Quando a Jukebox Poet Ana Sofia Elias encontra A Respiração do Tempo

foto minha para o desenho preciso (em forma de texto) da Ana Sofia Elias

A PONTILHISTA 

Na respiração do tempo (Minimalista, 2022), Ana Gilbert combina uma escrita ortogonal e com letra de médico com o pontilhismo da poesia. 

***

Ana Gilbert apresenta-se como uma contista pontilhista e, eu suspeito que isso só seja possível por ser uma artista multifacetada que traz para a escrita o contágio, a contaminação de outras artes. 

Aqui, o tempo (subjectivo e colectivo) – objecto literário escorregadio – tem cor, tem cinematografia (Vardaniana, Kar-Waiana) tem fotogrametria e, por isso, tem respiração. Respirar o tempo no tempo de hoje é muito desafiante e, paradoxalmente, sufocante. 

Um livro que traça os caminhos do sangue e do oxigénio, ´o movimento lento – sístoles e diástoles – invisível aos olhos apenas respirável´ – e que nos convida à respiração do tempo – mesmo quando nos encosta contra a violência do sufoco – é, por isso, importante. 

´A terra vibra em agonia insuspeita, reverberando fundo e mais fundo, alastrando um grito calado pelo horror. Os homens marcham como demônios. Desarticulados do mundo, as passadas firmes e lentas, e as pessoas olham como se de um filme se tratasse. Ou de uma excentricidade. Uma criança entorta o olhar e vê a arma de outro ângulo. Pensa que é uma brincadeira. E eles seguem. Esmagam o miolo delicado da flor – um dedo; torcem o caule da erva que se espalha – o mamilo de um seio quente. Pisoteiam o cigarro jogado ao chão, que queima lentamente a terra – a vulva que se oferece ao carinho.´ (p. 80, conto Convulsão).

A capacidade de Ana Gilbert para tornar o invisível respirável chega sem pré-aviso. Faz da visualidade, (i)respirabilidade – a partir do olhar dela que é nosso, emprestado. Os olhos-pulmões são centrais nestes contos – olhos cegos, fechados, lacrados, concentrados, tortos, sós, vazios, perdidos, afogados, cansados, melancólicos, aquosos, inquietos, mas também lúcidos, espantados, sonhadores e atravessados de poesia. 

Detive-me nesta fotogrametria do parto tão poética – ´Nasces. Como um poema. Lápis em atrito, a despejar palavras desordenadas no papel. Arranhaduras de pele com pele, em abalos convulsivos. A sensação viscosa de morte iminente. A explosão que te leva a uma outra vida num mundo aterrador. (…) Leio-te em voz alta. Reconheço-te. Poema escorreito que desembocou na margem, enfim.´ (p. 65, conto A hora)

Do parto à morte, das mortes aos partos, Ana Gilbert ´Vai repassando as imagens, como num carrossel para diapositivos. A escrita, os fragmentos, os olhos, o olhar.´(p. 38). No tempo sombrio do presente manter os olhos abertos – e continuar a respirar –  é um acto de coragem e resistência. 

´O que mostrar, o que querem ver? ´(p. 167)

A resposta chega pelo eco da cineasta francesa Agnès Varda: ´If we opened people we´d find landscapes´. Os contos de Ana Gilbert abrem. E encontram atmosferas e superfícies subjectivas cujos eixos, linhas e planos se cruzam formando ângulos rectos de 90 graus. Muros de violência e trauma (luto, solidão, morte, dor, desistência, entropia) encontram chãos ´com um resto de vida ´(p. 27) – prazer e sonhos. 

Paredes e chão formam, então, um L perfeito onde o tempo respira: ´movo-me no tempo abissal dos afectos´(p. 26).  ´Era ela com ela, era ela sem ela.´(p. 14-15)  Comunhão e ausência. Queda e voo. 

A sua escrita é, por isso, ortogonal. Atravessada pela perpendicularidade emocional mas também pela perpendicularidade narrativa. Em muitos dos contos, vira do avesso as personagens e a direcção narrativa. E como é frustrantemente prazerosa a ausência de um arco climático resolutivo ou a presença de um desfecho ambíguo ou opaco ou inesperado. Aí ´Não há tempo, apenas intervalo ´. (p. 50) (Para a nossa imaginação.)

Gosto deste elemento na escrita da Ana – dá intervalos para a decifração e para a ausência dela. Escreve contos com letra de médico – com ambiguidade e ofuscação (talvez porque é isso que acontece com a mecânica da memória que atravessa todos os contos e talvez com a própria mecânica do consultório de psicanálise). 

No que toca ao erotismo isso é particularmente triunfante. Há pouco erotismo com letra de médico – o meu predileto – na literatura contemporânea, mas a Ana consegue trazer-nos essa caligrafia. Uma caligrafia que parece beber da estética cinematográfica do género dito ´doomed romance ´ com o seu clássico In the Mood for Love de Wong Kar-Wai (2000).

No conto Circum-ambulação a circularidade da escrita cria um efeito de slow motion/câmara lenta, repetição, e mise-en-scène que coloca um holofote no objecto do desejo e na sensação do desejo. Eu não preciso de saber porque é que os protagonistas repararam um no outro para respirar a (in)visibilidade do desejo ou o papel das projeções e defesas – anunciado no espelho – nesse mesmo desejo. O conto não oferece intensidade no desenvolvimento da história e no preenchimento – teatralização ou encenação – das personagens,  preferindo uma lenta, arrastada e obsessiva recolha de um momento subtil para disparar e intensificar a emoção. Cada novo reescrever da mesma pergunta a três vozes (do homem, da mulher e do espelho), acrescenta e dilata a tensão porque satisfaz e frustra. A clareza e a opacidade do desejo no mesmo shot. Cair dentro do pântano, da areia movediça do desejo é muito mais diastólico e sistólico para a respiração do leitor. Deixa o sangue bombear e o desejo respirar. Esta concessão é uma abordagem interessante para a escrita do erotismo que teima em não se deixar colonizar pelas nossas caligrafias, mas esta, a da Ana, captou-me por olhar de dentro e de fora para a totalizadora e arrebatadora imediatez da sensualidade e da tesão. De fora, porque usa o espelho para convidar o leitor a participar como voyeur com memória do seu próprio tempo e com pele onde esse tempo e o da estória escorrem simultaneamente – duas bocas acesas no mesmo fogão que exigem atenção. 

No conto Histórias possíveis fui levada para a cinematografia do filme Porto (Gabe Klinger, 2017) mas fico-me por uma aproximação muito tímida: ´The camera is a voyeur, looking in at this relationship from without, perhaps from around the corner of a wall, through a window, from another booth in a restaurant, or through a mirror. ´ (online review no site Reddit). Serve isto para realçar que, neste conto, a perpendicularidade narrativa é sublimada.

No entanto, dizer que a Ana escreve com letra de médico não significa o encontro com uma escrita clínica. Pelo contrário, a prosa é poética porque pontilhista. Não é fácil escrever a respiração das emoções mas (tal como fez com o erotismo), Ana Gilbert consegue-o ao entregar-se a uma pintura de pontos com as palavras. 

Contista pontilhista, estilisticamente aplica pequenos pontos de cor pura lado a lado na tela do papel (em vez de misturá-los na paleta) que, à distância, se misturam opticamente, criando uma imagem mais vibrante e luminosa mesmo quando aquilo que o tempo (da leitura) respira (e nos dá a respirar) é sombrio e violento – tão violento que a nossa própria respiração fica suspensa, comprometida, engasgada, presa, sufocada. Isso aconteceu-me nos contos Convulsão e Estado onírico: ´ Um gato se aproxima, atraído pelo odor dos peixes. O homem cego toma o gato como se peixe fosse e esfrega o gato/peixe para lhe tirar as escamas/pele. O gato morre em carne viva e o homem cego sorri em sua máscara grotesca. Tenho nojo. ´(p. 73).  

A pintura de pontos começa logo na seleção de micro-contos que precedem cada conto.  As cores são puras. Evita o uso de cores misturadas para obter uma maior intensidade e luminosidade na sua escrita (como já vimos em relação ao erotismo).  Zona crepuscular impressionou-me pela beleza da cor da nostalgia que ela consegue isolar através do carácter fantástico e evocativo da sua escrita: ´Estiveste sempre aí? O toque se materializa e sinto: são as raias, grandes e pequenas, várias, muitas, numa dança etérea, um voo fora do ar. Circundam-me, algumas se enterram na areia, como ouro à espera de revelação. Ondulo como elas, voo como elas, deixo-me ficar, entregue a essa liberdade momentânea. Nossas superfícies se encontram, num prazer mútuo.´ (p. 107). Para mim, a raia foi um desses pontos de cor pura que não precisa ser misturado à priori com outras cores, outros pontos – o súbito anoitecer, a maré alta, a correnteza – para criar uma ilusão sensorial que está, afinal, enraizada na minha própria realidade. Isto acontece por causa da ilusão óptica, quando ela me convida a ser a misturadora interpretativa das cores que ela pinga para o papel. Uma espécie de ilusão de Chevreul mas no plano literário. Encontramos bordas brilhantes entre tiras adjacentes de cores puras. 

´ Fragmento a fragmento, dia após dia. Um mosaico de imagens, um tipo de colagem que reunia as suas partes dispersas. Ando em busca dos fragmentos de mim como naqueles quebra-cabeças de infinitas peças.´(p. 37, conto A Guardiã de sonhos). 

As cores dominantes – azul e vermelho.

´Uma nuvem de pássaros tinge o azul do céu com gritos vermelhos. ´(p. 80); ` A onda apareceu diante dela, o vermelho alastrou-se, o vale foi inundado.´ (p.37).

Nos 29 contos que dão corpo ao livro, este ´carnaval de rua ´(p.35) co-existe com uma tela a preto e branco, lembrando-me a estética do filme Poor Things de Yorgos Lanthimos (2023) em que opressão (pathos) e liberdade/emancipação (a sede de aventura, descoberta, inocência, curiosidade, surpresa e re-aprendizagem do mundo) não seguem uma lógica linear (uma lógica que é perturbadora e mágica ao mesmo tempo):

nenhum sorriso, apenas eletricidade; corrente contínua em circuito fechado. as duas, etéreas, no lugar do não-lugar, em travessia. azul.” (p.45)

´sinto-me um gigante invencível, sou violência e ocupo um espaço neste mundo feito de praça e sangue, sou corpo e existo fora do pântano, sou ritmo e o tempo volta a passar [explosão]´ (p.57). 

Explosivo é o ritmo e o encontro com as ilustrações delicadamente pontilhistas da Maraia – ´a escrita precisa de pele´. Também o minimalismo da edição respeita os poros da escrita.

O último fio de prumo que vou lançar para dentro deste livro violentamente bonito recai sobre os contos Meditação, Cena e Escrita onde encontro um paralelo com Helena Almeida, uma das artistas plásticas mais importantes da arte contemporânea portuguesa. Ana Gilbert reflecte sobre o uso do auto-retrato e sobre o processo criativo com a mestria inspirada – leia-se liberdade, multidisciplinaridade e experimentalismo – com que Helena Almeida criava.

´Ando em círculo; os ciclos voltam. O trabalho nunca está completo, tem de se voltar a fazer. O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o teto, o canto, o chão; depois, o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções. São maneiras de contar uma história´. (Helena Almeida, citada em: Carlos, Isabel – Helena Almeida: Dias quase tranquilos. Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p. 13.)

No diálogo imaginário que me atrevo a entreter Ana Gilbert responderia: ´Começou a tecer sua própria filigrana e se descobriu capaz de criar parcerias de enfeitiçada sonoridade que ecoavam no espaço, provocando a sua estabilização. O tempo encolheu e ganhou a regularidade do ritmo; aos poucos, as formas começaram a ganhar definição. Olhou-se ao espelho e percebeu as mudanças. A pele, tornada texto, reluzia.´ (p.173).

Não é por acaso que o meu primeiro ímpeto quando li Ana Gilbert tenha sido escrever um poema blackout a partir do pontilhismo reluzente de um dos seus contos. Foi um desvio egoísta, pressentindo que ao escrever ´a sério ´ sobre o que ela escreve ´sofreria com a minha incapacidade para decifrar-te ´ (p. 139). Os astrónomos egípcios discordariam de mim, mas existem livros que não se querem alinhados a fio de prumo. No entanto, eu tentei procurar a estrela polar que sustentasse a (tua) poesia. Aqui está[1].

Ana Sofia Elias

24 Junho 2025


[1] Agora vou ´à varanda fumar um cigarro, como de costume´ (p.31) e reler o primeiro parágrafo do conto Existência que começa assim ´Não sei bem como começou. Há muito que os dias estão sem contornos. Só sei das horas em que consigo fumar e esquecer de mim. (…) Debato-me e não saio do lugar. Não há onde possa segurar, alguém que me possa amparar. Apenas este sabor a morte, este cheiro acre que me devolve a presença do mundo, este mundo feito de mijo, vómito e merda. Afundo.´ (p.55). Fumo e espero que a noite chegue para continuar a procurar estrelas polares. De manhã, lançarei mais fios de prumo até piramidizar ´ um mundo em miniatura, feito de vida e verde, que lhe era mostrado por uma mulher que dizia: – Vê: o deserto não é tudo, é apenas preâmbulo de algo que está prestes a brotar… ´ (p. 152). E acredito, frouxamente, em predestinações. Note-se: Frouxamente é um advérbio optimista.


[obrigada é palavra pouca para tanta generosidade]

Deixe um comentário