Outono

Choro de outono… quando o mundo perde seus contornos e em parte perdemos os nossos…

As horas mortas

Foi à varanda fumar um cigarro, como de costume. Mas desta vez era diferente. Casamento desfeito, malas arrumadas, ida para um apart-hotel. Repara na vista que é desconhecida. Terá de observar cada edifício, cada árvore, até conseguir visualizá-los de olhos fechados para que a paisagem se torne familiar. Como a outra. As roupas trazidas, poucas, menos do que necessita – ternos gravatas camisas sapatos – convivem pacificamente no armário. Uma paz que não sente. Sabe que qualquer dia destes será preciso voltar e buscar mais. Objetos, quase nenhum, salvo alguns papéis dos negócios mais recentes, coisas de uso diário e a cigarreira de prata, herança de um avô distante, que agora acaricia.

Volta a pensar na mulher, nos filhos dormindo a essa hora. Prefere a madrugada, as horas mortas do dia. Sem solicitações familiares. O mundo se suspende por alguns momentos e quase é possível iludir-se de que tudo não passa de um episódio de mau gosto para perturbar sua metódica rotina. Sabe que não. Não desta vez. Agora é sem volta. A discussão com a mulher, que os filhos tardios presenciaram, arrebentou os últimos fios dos frágeis laços que os uniam. Corroídos pelo tédio. Era isso. Toda a sua vida se desenrolara em meio a um grande e inequívoco tédio. Dividia-se entre as roupas de trabalho e as outras, as de viver, que quase não usava.

Agora, frente ao vazio do horizonte, tenta retraçar os momentos bons, mas não consegue. Como os edifícios da nova vizinhança. Eles escorregam na memória, pregam peças, escondem-se por entre os contratos fechados com os seletos clientes. Percebe que o vazio é também seu. Depara-se com o abismo instalado, sorrateiro, cavado sistematicamente a cada novo amanhecer sem sentido.

Um brisa morna, estagnada, balança as folhas das árvores da rua. Imagina sentir um cheiro acre que o deixa vagamente nauseado. Um leve tremor perpassa os dedos que sustentam o cigarro. Ao olhar a sala, percebe nos móveis impessoais as escolhas que nunca foram profundamente suas, mas de alguém que o habita. Quem?

Pela primeira vez, é capaz de nomear algo em si e empalidece. Um filete de suor frio escorre pela têmpora. Sente, e isso é novo, que é preciso fazer alguma coisa. Aquela sensação difusa na boca do estômago de repente grita dentro dele. Uma dor aguda corta-o em diagonal, como o risco do espelho partido pelo frasco de perfume de mulher na noite anterior.

Como que em câmera lenta, apaga o cigarro e encara o telefone. Em algum ponto da cidade, na paisagem compartilhada, um outro telefone toca.

As horas mortas | Ana Gilbert (texto e foto)

Conto Minimalista #5 | Parceria com Til Magazine

Mapas do Confinamento

O projeto MAPAS DO CONFINAMENTO é “um projeto trilingue que une os falantes de português com o intuito de desenhar uma cartografia do confinamento através da arte e da cultura.
Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé, Timor Leste e Diásporas de expressão portuguesa – Bélgica, França, Países Baixos, Reino Unido – são estes os “Mapas do Confinamento” que quase cem artistas, escritora .es, fotógrafa .os, ilustradora .es, poetas, tradutora .es – de todas as origens e sotaques – estão a construir coletivamente em português (mas traduzidos para francês e inglês porque o mundo também é feito de outros idiomas) como forma de assinalar este momento marcante da nossa História.”

Participo com um CONTO e um ENSAIO FOTOGRÁFICO .

NÓS (conto)

Não sei o teu nome, nunca tive coragem de perguntar. Mas somos vizinhas. De vida. Habitamos a mesma pele, ainda que muitos metros de tecido esgarçado nos separem. Não sei onde estás; passo pelos lugares de costume e vejo somente a tua ausência. Em que calçada te sentas agora?

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A SOMBRA DOS DIAS (ensaio fotográfico)

Fotografo a sombra dos dias para ter a certeza de que eles passam.

A sombra da saudade

ensaio completo disponível aqui

A sombra

De súbito, penso que o corpo existe sem mim, sem essa dimensão pensante que escreve. Penso que ele abriga todas as palavras inventadas e as vai libertando, uma a uma, para que eu as utilize. Eu, mero instrumento de sua linguagem. Eu, identidade exagerada pela razão.”
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Excerto do meu conto ‘A SOMBRA’ para a Antologia Crocitar de Lenore, 2021.


A Antologia Crocitar de Lenore reúne releituras contemporâneas dos poemas ‘O CORVO’ e ‘LENORE’, de Edgar Allan Poe.
É um ebook editado pela Morse Laboratório Editorial de distribuição livre e gratuita. Pode ser acessado e baixado aqui.

O mar

O mar em redor de mim – não tanto uma casa para habitar, mais para estar.”

Palavras | Ondjaki (Coração com ferrugem, E se amanhã o medo)