A demora

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto [poemas escolhidos]

Pessoas como casas

People as houses

E se fossem os sentimentos a escolherem as pessoas, tal como as pessoas escolhem as casas onde querem viver?
E se as pessoas fossem, afinal, simples casas onde os sentimentos podem habitar?

What if feelings chose people, just as people choose the houses they want to live in?
What if people were, after all, simply houses where feelings could dwell?

Paulo Kellerman

Portable Link, projeto com Paulo Kellerman. Um diálogo entre literatura e fotografia, entre imagem e palavra.

Lar | Fotografar palavras # 5403

Na publicação # 5403 do FOTOGRAFAR PALAVRAS, a companhia é do belo poema do ~nassr

Lar

Reconheci-te no instante em que te encontrei —
o teu sorriso, rebeldia talhada em alegria contida,
as conversas que murmuravas às folhas de chá,
como se o futuro se escondesse no perfume do vapor.
Conhecia a tua alma muito antes
de a tua pele dizer o primeiro olá.
Não foi fogo, nem carne, nem vertigem,
foi apenas o ver através:
as tuas inseguranças — disfarçadas de armadura,
o teu perfume — um mapa sem destino.

Ergui um lar dentro de ti.
Mas o chão tremia,
o vidro partiu-se sob o nosso peso,
e o lar desfez-se — um fantasma de abrigo,
deixando-me órfão de um lugar onde nunca vivi.

Procurei-te noutros rostos,
derramei-me em corações abertos,
na esperança de que guardassem o eco da saudade.
Mas cada casa onde entrei
era um quarto sem ar,
um corpo sem morada.

Ser refugiado ensinou-me
que os lares não se talham em pedra —
a pedra cede sob o peso do exílio.
Um ano, um lugar,
e recomeça-se.
Mas a alma cansa-se
de paredes que não escutam.

Uma casa pode conter o corpo,
mas é o lar que contém o coração.
E se os lares que ergui nos outros
nunca pudessem suportar o peso da minha alma?
E se todo o coração precisar de repouso,
mas nem todo o lugar o puder acolher?
Talvez o lar não seja um destino.
Talvez seja o instante do reconhecimento,
o breve pulsar onde duas almas murmuram:
“Também eu te procurava.”

***

Home

I recognised you when I met you,
your grin—rebellion carved in quiet joy,
your whispered debates with tea leaves
as if they held your future in their scent.
I knew your soul, long before
your skin introduced itself.
No fire of attraction, no storm of flesh,
but I saw through the layers:
your insecurities—dressed as armor,
your perfume—a map to nowhere.

I built a home within you.
The foundation trembled,
glass fractured beneath our weight,
and suddenly, the home dissolved—
a phantom of safety,
leaving me homesick for a place
I’ve never been.

I searched for you in others,
emptied myself into open hearts,
hoping they’d catch the echo of longing,
but every house I entered
was a room empty of air.

Being a refugee taught me
homes aren’t carved in stone;
stone crumbles under the weight of exile.
One year, one place,
then you build again,
but the soul grows weary
of walls that don’t listen.

A house may hold the body,
but a home holds the heart.
What if the homes I’ve built in others
could not hold my soul’s weight?
What if every heart needs a place to rest,
but not every place can carry the heart?
Perhaps home isn’t a destination.
Perhaps it’s the pulse of recognition,
perhaps it’s the moment two souls whisper,
“I’ve been looking for you, too.”

Texto | Text: ~nassr
Fotografia | Photography: Ana Gilbert

FOTOGRAFAR PALAVRAS, projeto criado pelo Paulo Kellerman em 2016. Lugar para ler e ver devagar. Publicações diárias.

Caminha

Caminha na minha direcção, mas não
me vê; agita a mão, mexe os dedos como
se tentasse agarrar o ar. Apesar do seu
comportamento peculiar, a expressão é
pacífica, a postura é tranquila.

Pergunto: Tentas pegar o ar com a mão?

Sorri. Responde: Não, tento agarrar o
amor.

Passa por mim e afasta-se, conduzido
pelo seu sorriso; e assim desapareço da
sua vida. Nem memória serei.

Vejo como se afasta, vejo como
desaparece; e enquanto vejo, pergunto:
será que já não existe amor em mim?

***

She walks in my direction, but does not see me; she agitates her hand, moves her fingers as if trying to grab the air. In spite of her peculiar behaviour, her expression is pacific, her posture is calm.

I ask: Are you trying to catch the air with your hand?

She smiles. And answers me back: No, I am trying to grab love.

She passes by and walks away, lead by her smile; and then I disappear from her life. I will not be even a memory.

I see how she walks away, I see how she disappears; and as I watch her, I ask myself: Is there no longer love in me?

photographs by Ana Gilbert
text by Paulo Kellerman

[in Geografias Corporais, Alter Edições, 2022]

Portable Link

Existência

Não sei bem como começou. Há muito que os dias estão sem contornos. Só sei das horas em que consigo fumar e esquecer de mim. Porque não há nada na minha vida antes da rua de que valha a pena lembrar; porque não sou sequer uma pessoa. Sinto que vou perdendo pedaços pelas ruas por onde vagueio; eles aderem às escadas calçadas bancos onde me encosto. Ficam os buracos na carne. Por eles, vaza a podridão da minha existência. Estou condenado a este presente sem horizonte. Durmo e acordo neste agora, que me engole com a voracidade traiçoeira de um pântano. Debato-me e não saio do lugar. Não há onde possa segurar, alguém que me possa amparar. Apenas este sabor a morte, este cheiro acre que me devolve a presença do mundo, este mundo feito de mijo, vômito e merda. Afundo.

Por vezes, penso que poderia ser um sonho ruim. E que acordaria sobressaltado e ofegante ao som de um despertador qualquer, numa cama feita de branco. Ao meu lado, alguém pousaria a mão sobre a minha pele assustada e diria que está tudo bem. Talvez um dia aconteça, se eu quiser muito. Mas não sei como é querer, desejar algo, ser desejado. Não consigo imaginar, imaginar-me, perceber o que sustenta os meus fragmentos. Sei apenas da exaltação anestesiante que o fumo me traz; da consciência aguda dos movimentos do corpo. E da vontade de foder, não importa com quem. Por instantes, a necessidade insaciável do corpo, o pau intumescido a penetrar em outro corpo, tão sem contornos quanto o meu, basta para apagar dos meus olhos o desejo de ver a beleza que não faz parte de mim. Depois da explosão do gozo sem prazer, é o afastar dos corpos suados, a respiração agitada, a pele sem registros, o vazio. Não sei quando foi a última vez que comi. O ódio aplaca a fome. Revirar as lixeiras exaure. Ou é esta existência informe que cansa; o olhar de nojo das pessoas que passam por mim e viram a cara para que a minha imagem não lhes invada os sonhos. Cansa esta realidade partida, feita de planos sobrepostos não comunicantes, com seus enredos e encenações; películas elásticas que se deformam ao toque e engolem a voz.

Não sei bem como começou. Uma angústia envolta em fogo e dor. Ele estava ali, deitado na praça, e me incomodou desde o primeiro momento em que o vi. Tem algo que não tenho e quero e preciso. Uma altivez, um ar de interesse, uma fagulha de vida. Quis conversar comigo. Insistente. Falava de algo, não me lembro o quê, talvez sobre passados e famílias. Resmunguei qualquer coisa e tentei sair fora; sentei no meu canto feito de papelão e fechei os olhos. Tinha acabado de fumar e senti o ódio crescer no peito e nas mãos. O corpo a se agitar. Pensei que poderia deixar de estar ali, desaparecer, sair caminhando pelas ruas, encontrar um cachorro e despejar nele o meu desespero. Mas a voz, irritante irritante irritante, continuou.

– Para, chega – levanto-me, parto para cima dele, desprevenido e entregue, olhos assustados, meus dedos selvagens agarram os cabelos, já não distingo dedo e fio, começo a golpear a sua cabeça contra o piso da calçada, não sinto nada, não vejo os seus esgares de dor, não escuto os seus murmúrios, recuso a sua humanidade, desprezível como a minha, vejo o sangue da vida entreaberta a escorrer na calçada, ganho força e sei naquele minuto que ele deve morrer, o ritmo das batidas é constante, confunde-se com as pancadas do meu coração, somos um nesta dança frenética e mortal, escuto um estalar de ossos e o prazer de imaginar a face deformada aumenta-me o tamanho, sinto-me um gigante invencível, sou violência e ocupo um espaço neste mundo feito de praça e sangue, sou corpo e existo fora do pântano, sou ritmo e o tempo volta a passar [explosão]

(in A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

Um lugar de passagem

UM LUGAR DE PASSAGEM, projeto com Frankie Boy (2024), agora em formato digital.

uma câmera
um rolo de filme
dois fotógrafos

Frankie Boy fotografou Ana Gilbert
Ana Gilbert fotografou Frankie Boy

[edição bilíngue]

A PLACE OF PASSAGE, a project with Frankie Boy (2024), now in digital format.

a camera
a roll of film
two photographers

Frankie Boy photographed Ana Gilbert
Ana Gilbert photographed Frankie Boy

[bilingual edition]