Num lugar qualquer

Sobe as escadas, lentamente, num andar que seduz. Olha em direção ao café antes de seguir para a sala de exposição. A saia curta, as pernas bem torneadas, os seios demarcados na blusa. A bolsa a tiracolo, esquecida. Tem a idade da juventude, em que os dias fluem sem pressa. Observa cada quadro com meticulosidade. Concentrada que está, não percebe que é observada. Por mim. E por ti. Talvez tenha reparado em nós, talvez em ti, apenas. Mas comporta-se como que alheia a tudo e todos. E isso é ainda mais sedutor. 

Reparo que tens os olhos fixos nela. Acompanhas cada passo, cada movimento daquele corpo. Os olhos brilham, cedes à atração. Do corpo ou da história imaginada? Não sei e isso me excita.

Sei que começas a construir-lhe uma história. Idade, ocupação, relações. Desenhas um corpo com palavras. Inventas encontros e diálogos. Ensaias situações. E isso te envaidece. 

Tem sido assim desde sempre. Nossa história é longa, feita de sedução e cumplicidade. E de novidade. Precisas de novidades para permanecermos juntos. Nada é suficiente para ti; não sou suficiente,  e há muito deixei de tentar encontrar razões para isso.  Examinas a moça e o teu olhar me agride. O teu desejo me agride; o corpo dela me agride; e a sua juventude. Agrides-me. E me excito ao imaginar-te com ela, com todas como ela. Sempre jovens e interessantes e de olhares sonhadores. O que fiz aos meus sonhos? 

Agora, ela vem em nossa direção. Parece não nos ver. Ou finge não ver. Senta-se na mesa ao lado e pede um chá. Olhas discretamente, o ângulo não favorece. Sinto a conexão que se estabelece entre os três. Sim, algo nela se insinua: o cruzar de pernas, a lentidão do bule a entornar o chá, a echarpe que é retirada, expondo o pescoço esguio.

Sinto um calor repentino, a sala se tornou sufocante. O meu rosto arde. Ela está ao teu alcance, basta que pronuncies uma palavra. Imagino a aproximação lenta, a sedução quase explícita, a conversa que terias com ela. Reparo que estou a viver tudo isso dentro de mim. Tu e ela são apenas peças do meu jogo, que levo adiante como forma de me ferir. Qual a diferença entre prazer e dor? Volto à cena e constato que já não te preocupas em disfarçar o interesse. Há agora um esquadrinhar aberto, à espera de reciprocidade. Ignoras-me. Sou feita de matéria invisível, ainda que em carne-viva.

Ela termina o chá; olha-nos. Sim, encara os dois. O que pensará? Ter-se-á interessado por ti? Por mim? Contudo, nada mais acontece. Ela se levanta, sem pressa, dá meia-volta e desaparece das nossas vidas. 

Esta noite, quando estivermos a foder, pensarás nela. Eu também.

[in A respiração do tempo, Minimalista, 2022]

Ritual

quero tocar-me.
a minha pele
onde guardo as memórias,
(quais?)
nela, o que sei de mim
toco-me.
deslizo dedos
molhados de saliva
e a pele é animal arisco
arrepia-se, elétrica
(tesão)
toco-me
presença feita de luz
é superfície trêmula contra a pele quente
(sinto)
invento lembranças marcas gozos
e flores
toco-me.
do jeito que sabes
perto da janela
(esvoaçante)
exposta a olhares
em ritmos aquosos
palpitantes
(presença entumescida)
toco-me
na madrugada insone
silenciosa
percorro relevos
rios e fontes
mergulho profundo
(respiração entrecortada)
reverbero em camadas 
suspensa
e existo em mim.

[poema apresentado no Sarau Maroto | Lisboa 18 Out 24]

Diálogos

Uma das coisas mais bonitas da arte são os diálogos que ela permite. É sempre um prazer e uma honra descobrir que meu trabalho inspira outros artistas.

Desenho por Anxiety Rush, artista que passeia pela música, fotografia e desenho.

by Anxiety Rush

I feel you

Untouchable pt. 2 (Anathema)

Why I should feel this way?
Why I should feel this way?
Why I should feel the same?
Something I cannot say
Something I cannot say
Something I can’t explain

I feel you outside at the edge of my life
I see you walk by at the edge of my sight

Why I should follow my heart?
Why I should follow my heart?
Why I should fall apart?
Why I should follow my dreams?
Why I should follow my dreams?
Why I should be at peace?

I feel you outside at the edge of my life
I see you walk by at the edge of my sight

I had to let you go to the setting sun
I had to let you go and find a way back home
I had to let you go to the setting sun
I had to let you go and find a way back home

(When I dream, I see you)
(When I dream, I see you
)

I’ve never seen a light that’s so bright
I’ve never seen a light that’s so bright
I’ve never seen a light that’s so bright
Blinded by the light that’s inside
Blinded by the light that’s inside
Blinded by the light that’s inside you

I had to let you go to the setting sun
I had to let you go and find a way back home

silêncio

“Estava vendo um silêncio que tem a profundidade de um abraço.”

Clarice Lispector (A paixão segundo G.H.)

tempo, tempo

Oração ao tempo

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo

Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo, tempo, tempo, tempo

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo, tempo, tempo, tempo
Quando o tempo for propício
Tempo, tempo, tempo, tempo

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo, tempo, tempo, tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo, tempo, tempo, tempo

O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Apenas contigo e ‘migo
Tempo, tempo, tempo, tempo

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Não serei, nem terás sido
Tempo, tempo, tempo, tempo

Ainda assim, acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, tempo, tempo, tempo

Portanto, peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo, tempo, tempo, tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo, tempo, tempo, tempo

Canção: A Outra Banda da Terra e Caetano Veloso

Demolição

Juramento
Hei-de aprender a fazer jardins
dentro dos meus olhos.

Cumprido
Colho as tuas flores de sol
dentro dos meus olhos.

Poemas de Joana M. Lopes, do livro Demolição (Ideia-Fixa, 2023)

Porque a dor, a morte, a ruína, o desespero, a falta também são feitos de beleza.