Roto

Roto está
o meu
mun do
e não há agulha
que o remende.

Lúcia Vicente, Do dia que passa e além-mar (2025)

da coleção de poesia da nossa Minimalista

encomendas: minimalista.editora@gmail.com ou por DM

Capella Magna

Pestanejamos nimbos e naipes inventraçados.

Simples escovadoras
a perolizar
a capela sistina
das palavras.

Escovamos com pestanas opala-arlequim.
Cardealinas, sangue-de-Adão.

Assim nascem(os) sonhos e perolices.

Poema | Ana Sofia Elias

As aldeãs

Como se estivéssemos sentadas
Nas escadas da casa do bairro
A cumprimentar as aldeãs aprilinas
Nácares perolizantes
cabelo de copas e espadas
Preso com um gancho
a lembrar os países que ainda não conheço.

Estadualizei o carpo negro na cruz opalina que levavam ao peito
Só a minha linchagem
era de cor anilada
Enrugamento no céu da boca

E pestanejámos palavras nimbadas enquanto os castores e as rosas-de-toucar azulinavam os valetes e as damas e toscanejavam num murmúrio verdeal.

[o belo poema de Ana Sofia Elias]

Monday

Monday is the day I learned not to make deals with the system.

Anne Carson (Wrong Norma, 2024)

Guardanapo

Copiosamente, a mão esquerda que alisa os lugares acantonados.

Copiosamente, reparo.

A sensualidade tem cheiro de filme:

mãos garrafais
queixo nas mãos.
Espelho.
Madeira sólida.
Arrisco histórias.

Cabelos
que chamam dedos que os acariciem.
Um pescoço que pede uma boca
E agora?

Indefinível.
Leve desleixo.
Também a sensualidade
Furou as nuvens.

_____

BLACK OUT POETRY do meu conto Histórias possíveis (A respiração do tempo, Minimalista, 2022), pela bonita Ana Sofia Elias.

Circum-ambulação

Ao se observar ao espelho repara no homem atrás dela.
O homem está atrás dela para que repare nele quando se observar ao espelho.
Observa-se ao espelho apenas para reparar no homem atrás dela.
Somente observando-se ao espelho pode reparar no homem atrás dela.
Repara que pode observar pelo espelho o homem atrás dela.
O homem que está atrás repara que ela se observa ao espelho.
O espelho observa que ela repara no homem que está atrás.
Observa-se ao espelho e há um homem atrás dela que repara.
Só observa o homem que está atrás ao reparar nela no espelho.
Observa pelo espelho o homem que repara que está atrás dela.
Repara que o homem atrás dela se observa ao espelho.
O homem atrás dela repara que é observado pelo espelho?
Espelha-se ao ser observada pelo homem atrás que repara nela.
Atrás dela, o homem. Ao observar-se ao espelho, repara.
O espelho atrás repara que o homem a observa.
O homem e ela só se observam porque atrás o espelho repara.
Sendo ela repara que o homem atrás a observa pelo espelho.
Repara no homem que observa atrás do espelho.
Observadora, repara no espelho atrás do homem.
Reparem como observa pelo espelho o homem atrás dela!
O homem atrás repara no espelho e ela observa.
Atrás do espelho o homem e ela reparam e se observam.
Observam que ela repara no homem atrás dela pelo espelho?
Repara-se quando o homem atrás dela a observa pelo espelho.
Observa o espelho atrás do homem. Ele repara nela.
Quando reparará que o homem atrás dela a observa pelo espelho?
Apenas reparando nela pode observar no espelho o homem que está atrás.
Exclusivamente ao espelho pode reparar que é observada pelo homem atrás dela.
E o espelho, reparará que ela e o homem atrás se observam?
Repara no espelho e observa nele o homem que está atrás dela.
Um espelho. Observa-se. Atrás o homem. Repara.
Ela se observa. Atrás, o espelho e o homem que repara.
Subitamente o homem que está atrás repara que é observado por ela no espelho.

(A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5101

Esta poesia que legas

Como sobreviver a toda a solidão?
Alguém amou o que pressentiu
ou alguém pressentiu o que amou?

Nos seus tentáculos rubros, a derrota
aguenta todo o volátil movimento.

Para que servem estes versos se são
como todos os outros, insondáveis
no corpo solar de um Portugal de mar?

Os dias, em sua ferocidade, iludiram-me;
as noites, em sua violência, acusaram-me.

Esta derrota que distribuis, esta poesia
que legas, sabes, criar a ilusão no mundo
foi profundo e imundo por entre açucenas. 

__________

This poetry you bequeath 

How to survive all loneliness?
Did someone love what they sensed
or did someone sense what they loved?

In its crimson tentacles, defeat
endures all volatile motion.

What use are these verses if they are
like all others, unfathomable
in the solar body of a Portugal of sea?

The days, in their ferocity, deceived me;
the nights, in their violence, accused me.

This defeat you disseminate, this poetry
you bequeath, you already know, to create an illusion in the world
was profound and filthy among lilies.

Fotografar palavras, desde 2016 a espalhar beleza. Projeto do Paulo Kellerman e de toda(o)s nós.

Text|o: João Rasteiro