Existência

Não sei bem como começou. Há muito que os dias estão sem contornos. Só sei das horas em que consigo fumar e esquecer de mim. Porque não há nada na minha vida antes da rua de que valha a pena lembrar; porque não sou sequer uma pessoa. Sinto que vou perdendo pedaços pelas ruas por onde vagueio; eles aderem às escadas calçadas bancos onde me encosto. Ficam os buracos na carne. Por eles, vaza a podridão da minha existência. Estou condenado a este presente sem horizonte. Durmo e acordo neste agora, que me engole com a voracidade traiçoeira de um pântano. Debato-me e não saio do lugar. Não há onde possa segurar, alguém que me possa amparar. Apenas este sabor a morte, este cheiro acre que me devolve a presença do mundo, este mundo feito de mijo, vômito e merda. Afundo.

Por vezes, penso que poderia ser um sonho ruim. E que acordaria sobressaltado e ofegante ao som de um despertador qualquer, numa cama feita de branco. Ao meu lado, alguém pousaria a mão sobre a minha pele assustada e diria que está tudo bem. Talvez um dia aconteça, se eu quiser muito. Mas não sei como é querer, desejar algo, ser desejado. Não consigo imaginar, imaginar-me, perceber o que sustenta os meus fragmentos. Sei apenas da exaltação anestesiante que o fumo me traz; da consciência aguda dos movimentos do corpo. E da vontade de foder, não importa com quem. Por instantes, a necessidade insaciável do corpo, o pau intumescido a penetrar em outro corpo, tão sem contornos quanto o meu, basta para apagar dos meus olhos o desejo de ver a beleza que não faz parte de mim. Depois da explosão do gozo sem prazer, é o afastar dos corpos suados, a respiração agitada, a pele sem registros, o vazio. Não sei quando foi a última vez que comi. O ódio aplaca a fome. Revirar as lixeiras exaure. Ou é esta existência informe que cansa; o olhar de nojo das pessoas que passam por mim e viram a cara para que a minha imagem não lhes invada os sonhos. Cansa esta realidade partida, feita de planos sobrepostos não comunicantes, com seus enredos e encenações; películas elásticas que se deformam ao toque e engolem a voz.

Não sei bem como começou. Uma angústia envolta em fogo e dor. Ele estava ali, deitado na praça, e me incomodou desde o primeiro momento em que o vi. Tem algo que não tenho e quero e preciso. Uma altivez, um ar de interesse, uma fagulha de vida. Quis conversar comigo. Insistente. Falava de algo, não me lembro o quê, talvez sobre passados e famílias. Resmunguei qualquer coisa e tentei sair fora; sentei no meu canto feito de papelão e fechei os olhos. Tinha acabado de fumar e senti o ódio crescer no peito e nas mãos. O corpo a se agitar. Pensei que poderia deixar de estar ali, desaparecer, sair caminhando pelas ruas, encontrar um cachorro e despejar nele o meu desespero. Mas a voz, irritante irritante irritante, continuou.

– Para, chega – levanto-me, parto para cima dele, desprevenido e entregue, olhos assustados, meus dedos selvagens agarram os cabelos, já não distingo dedo e fio, começo a golpear a sua cabeça contra o piso da calçada, não sinto nada, não vejo os seus esgares de dor, não escuto os seus murmúrios, recuso a sua humanidade, desprezível como a minha, vejo o sangue da vida entreaberta a escorrer na calçada, ganho força e sei naquele minuto que ele deve morrer, o ritmo das batidas é constante, confunde-se com as pancadas do meu coração, somos um nesta dança frenética e mortal, escuto um estalar de ossos e o prazer de imaginar a face deformada aumenta-me o tamanho, sinto-me um gigante invencível, sou violência e ocupo um espaço neste mundo feito de praça e sangue, sou corpo e existo fora do pântano, sou ritmo e o tempo volta a passar [explosão]

(in A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

Deixe um comentário