Pessoas como casas

People as houses

E se fossem os sentimentos a escolherem as pessoas, tal como as pessoas escolhem as casas onde querem viver?
E se as pessoas fossem, afinal, simples casas onde os sentimentos podem habitar?

What if feelings chose people, just as people choose the houses they want to live in?
What if people were, after all, simply houses where feelings could dwell?

Paulo Kellerman

Portable Link, projeto com Paulo Kellerman. Um diálogo entre literatura e fotografia, entre imagem e palavra.

quando desces da montanha

quando desces da montanha
trazes contigo o rumor dos sobreiros
e o hálito agreste da urze colado à pele.
há sempre um frio que te antecede,
como se a geada te tivesse escolhido
para corpo e manto.

eu, que me perco nas planícies,
reconheço em ti a altura do que não alcanço.
não desces apenas
trazes um mundo em suspensão,
um tremor antigo que me percorre os ossos
como um bicho indizível.

o sol recua para te deixar passar.
os charcos, esses, guardam o reflexo do teu riso
como quem aprende a arte da claridade.
e eu, que há muito deixei de esperar,
espero-te.
porque quando desces da montanha
sinto o meu corpo regressar ao seu princípio:
um sopro húmido, uma lembrança de lume,
o desejo de me perder outra vez
num inverno, que apesar de denso
deve acolher a claridade dos cristais.

Poema | Rui Coutinho

Uca

UCA, o livro de Ana Sofia Elias, é viagem demorada, sem volta.
Lisérgica.
Uca é desajuste.
É dor partilhada, sonho segredado, fantasia projetada.
Uca é pausa, lugar de descanso inquieto, de entrega temerosa. E prazerosa.
Uca é desafio da fala, é dança cantada.
Dança das palavras, por vezes, descompassada.
É grito mudo.
Ensurdecedor.
É beleza delicada e pulsante.
É toque sutil. Por vezes, soco no estômago.
Desdobra-nos pelo caminho e já não conseguimos refazer o origami que um dia fomos.

Uca é Ana.
E esta Ana que escreve espelha a Ana que escreveu.

Anas em voo livre.

***

Escantilhão

Quando eu nasci
Deus entregou-me um escantilhão e, desde esse dia, tenho sido uma recortadora de vida
Sigo entretida
a passá-la por um escantilhão
e a ser escantilhada por ela

Esse tal Deus que não tem nome – mas desceu para me visitar –
deu-me olhos de lince
e fome de me deslumbrar

    Os olhos de lince servem para
    caçar as coisas delicadas
    que gostam de brincar às escondidas
    com os meros mortais
    para quem elas passam despercebidas
    e desiguais

    O Deus anónimo
    também me deu mãos de violino
    para fabricar delicadezas a partir da cidade que me rodeia
    e o que me rodeia é esta sala que faz parte desta casa
    que habita neste bairro
    que um dia, tal como eu, também nasceu desta cidade

    Mas este poema não é sobre o meu nascimento
    É sobre a minha chegada
    Hoje eu sou aquela que chega a ela própria que aterra em si

    Hoje
    eu sou aquela que carrega os intestinos nos olhos
    е a garganta nas mãos

    Faço a digestão de todos as montras do mundo
    através dos olhos
    E respiro o mundo dos coisas e das cidades pelos pulmões das mãos.

    O delicado é
    o meu fado.

    Ana Sofia Elias (Uca, 2024)

    FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5334

    Esguia-te no véu translúcido do romance e depois conta-me como é viver em modo nude e estradas inesperadas. Pensando bem, leva-me contigo e deixa os floreados para outra.

    Slip into the translucent veil of romance and then tell me what it’s like to live in nude mode and on unexpected roads. Or rather, take me with you and leave the flourishes to someone else.

    Texto | Text: Sandra Francisco
    Fotografia | Photography: Ana Gilbert

    Na publicação # 5334 do FOTOGRAFAR PALAVRAS, a parceria no texto é com a Sandra Francisco.

    Fotografar palavras é um projeto criado pelo Paulo Kellerman, há 9 anos e configura um espaço de criação livre e de encontros, graças ao talento do Paulo em agregar pessoas e afetos.

    A nossa sexta exposição permanece em cartaz no m|i|mo, em Leiria, até o dia 9 de novembro de 2025. Visitem!

    Chegares

    um instante na memória de chegares é mais valioso do que jardins, do que montanhas, do que anos de tempo.

    José Luís Peixoto (A Casa, a Escuridão)

    XXXVI


    It is this body that holds all that I am.

    An envelope that contains me,
    Defines me,
    Limits me.

    And everything I am is born in it.
    But is everything that is born in my body mine?

    Universes of desires that arise and grow
    And multiply,
    Fleeting or perhaps eternal,
    Powerful and immense in their power
    Of disconcerting.

    Do they belong to me?

    Desires that are dreams
    Without flesh
    Or material density
    Or geometric contour
    Or palpability.

    Perhaps dreams are a concrete reality,
    As concrete as the most consistent
    Of realities.
    Concrete like a tree or a bridge or a clothesline or a fire
    Or a body.m
    But a reality lacking the senses.

    Concrete,
    But without dimension or volume.
    Without physical outline or measurability,
    Just intention and design.
    Like when you say you want to give me a hug
    Or a kiss,
    But you do not really give me a hug
    Or a kiss.

    My body produces universes of desires,
    Immense in their power
    Of disconcerting.

    But useless.

    What good are dreams
    If you cannot touch them?

    in And when the questions are over? REIMAGINED

    Paulo Kellerman (text) & Ana Gilbert (photo)

    Carta

    “O trem veloz chegou carregado das mais belas rosas do mundo. Mas você não veio.
    Se isso acontecer outra vez estendo-me sobre os trilhos.”

    excerto de carta de Nise da Silveira a Marco Lucchesi (in Viagem a Florença, de Marco Lucchesi, 2025)

    Longe

    “Antes longe era distante
    Perto, só quando dava
    Quando muito, ali defronte
    E o horizonte acabava”

    Gilberto Gil

    FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5274

    O blog FOTOGRAFAR PALAVRAS comemora 9 anos neste mês de agosto.
    Criado pelo querido amigo Paulo Kellerman e cuidado por tod@s nós, o projeto é uma casa artística que nos abriga e alimenta em tempos sombrios.
    Espaço de resistência poética, o blog une fotógrafos e escritores no amor partilhado por palavras e imagens. É uma galeria de arte que nos oferece a oportunidade de contemplação silenciosa; um outro tempo, fora da volatilidade das redes.
    Visitem; há muito o que ler e ver por lá.

    A parceria de hoje na publicação # 5274 é com o Paulo:

    Disse: o mundo está a desmoronar e ninguém o pode impedir. Disse: essa sensação de impotência é tão dolorosa. Disse: gostaria muito que alguém pudesse reverter as desgraças que vemos dia após dia. Disse: mas já não acredito mais que isso seja possível. Disse: o mundo está a morrer e ninguém pode fazer nada.
    Respondi: então agora sabes como deus se sente desde que o mundo existe. Agora sabes como é ser deus. Gostas?

    ***

    He said: the world is collapsing and no one can stop it. He said: this feeling of powerlessness is so painful. He said: I wish so much that someone could reverse this disgrace that we see day after day. He said: but I no longer believe it’s possible. He said: the world is dying and nobody can do anything about it.
    I replied: so now you know how god has felt since the world existed. Now you know what it’s like to be god. Do you like it?

    Texto | Text: Paulo Kellerman

    Se

    Se fosse aguaceiro
    Caía em ti como pena
    Como cena de filme.
    Como película
    Que desvenda
    Sopros no peito.
    Leitos.

    Jorge VAz Dias

    sonho

    “Fui sonhada por ti.”

    José Eduardo Agualusa (Manual prático de levitação)

    I am made of volcanic ash
    where pipe dreams and grief marry and clash

    words: Ana Sofia Elias

    [there are people who reflect and unfold us, who share wings and shadows]

    encontro

    Acaso é este encontro
    entre o tempo e o espaço
    mais do que um sonho que eu conto
    ou mais um poema que eu faço?

    Paulo Leminski (Toda poesia)

       

    morar

    “Morar não significa apenas estar cercado por qualquer coisa, nem ocupar determinada área no espaço terrestre. Significa criar um vínculo tão intenso com certas coisas e certas pessoas que a felicidade e a nossa respiração se tornam inseparáveis.”

    Emanuele Coccia (Filosofia da casa)