Um lugar de passagem

UM LUGAR DE PASSAGEM, projeto com Frankie Boy (2024), agora em formato digital.

uma câmera
um rolo de filme
dois fotógrafos

Frankie Boy fotografou Ana Gilbert
Ana Gilbert fotografou Frankie Boy

[edição bilíngue]

A PLACE OF PASSAGE, a project with Frankie Boy (2024), now in digital format.

a camera
a roll of film
two photographers

Frankie Boy photographed Ana Gilbert
Ana Gilbert photographed Frankie Boy

[bilingual edition]

Gosto

Gosto de cruzar as fronteiras.

Olga Tokarczuk (Sobre os ossos dos mortos)

quando desces da montanha

quando desces da montanha
trazes contigo o rumor dos sobreiros
e o hálito agreste da urze colado à pele.
há sempre um frio que te antecede,
como se a geada te tivesse escolhido
para corpo e manto.

eu, que me perco nas planícies,
reconheço em ti a altura do que não alcanço.
não desces apenas
trazes um mundo em suspensão,
um tremor antigo que me percorre os ossos
como um bicho indizível.

o sol recua para te deixar passar.
os charcos, esses, guardam o reflexo do teu riso
como quem aprende a arte da claridade.
e eu, que há muito deixei de esperar,
espero-te.
porque quando desces da montanha
sinto o meu corpo regressar ao seu princípio:
um sopro húmido, uma lembrança de lume,
o desejo de me perder outra vez
num inverno, que apesar de denso
deve acolher a claridade dos cristais.

Poema | Rui Coutinho

FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5369

É sempre uma alegria estrear nova colaboração no projeto Fotografar Palavras
Na publicação # 5369, a parceria no texto é com a Rita Bertrand.

Eis-me, aquela que amavas, diariamente enlutada,
a girar incessante no redemoinho da saudade.
A pior morte é esta, a que ainda respira
mas já só caminha para trás.

Here I am, the one you loved, daily in mourning,
spinning incessantly in the whirlpool of longing.
This is the worst death, the one that still breathes
but only walks backwards.

Texto | Text: Rita Bertrand
Fotografia | Photography: Ana Gilbert

Fotografar palavras, projeto com publicações diárias, desde 2016. Criação do Paulo Kellerman, cocriado diariamente por tod@s nós.

LEMBRETE: a 6a. exposição do Fotografar Palavras fica em cartaz no m|i|mo, em Leiria (Portugal) até o dia 9 de novembro de 2025.

Para quem não puder ir, há a exposição permanente no nosso blog. Visitem aqui.

“Somos estrangeiros também, e principalmente, diante da nossa felicidade”.

Emanuele Coccia (Filosofia da casa, 2024)

vazios

já não há santos nos oratórios.

[Gaza também é aqui]

there are no saints left in the shrines.

[Gaza is here too]

Apenas

O tempo é apenas uma sequência de acasos. A eternidade é apenas uma sequência de acasos. A existência é apenas uma sequência de acasos. Tu és apenas uma sequência de acasos.

***

Time is just a sequence of coincidences. Eternity is just a sequence of coincidences. Existence is just a sequence of coincidences. You are just a sequence of coincidences.

Text: Paulo Kellerman

Portable link

Uca

UCA, o livro de Ana Sofia Elias, é viagem demorada, sem volta.
Lisérgica.
Uca é desajuste.
É dor partilhada, sonho segredado, fantasia projetada.
Uca é pausa, lugar de descanso inquieto, de entrega temerosa. E prazerosa.
Uca é desafio da fala, é dança cantada.
Dança das palavras, por vezes, descompassada.
É grito mudo.
Ensurdecedor.
É beleza delicada e pulsante.
É toque sutil. Por vezes, soco no estômago.
Desdobra-nos pelo caminho e já não conseguimos refazer o origami que um dia fomos.

Uca é Ana.
E esta Ana que escreve espelha a Ana que escreveu.

Anas em voo livre.

***

Escantilhão

Quando eu nasci
Deus entregou-me um escantilhão e, desde esse dia, tenho sido uma recortadora de vida
Sigo entretida
a passá-la por um escantilhão
e a ser escantilhada por ela

Esse tal Deus que não tem nome – mas desceu para me visitar –
deu-me olhos de lince
e fome de me deslumbrar

    Os olhos de lince servem para
    caçar as coisas delicadas
    que gostam de brincar às escondidas
    com os meros mortais
    para quem elas passam despercebidas
    e desiguais

    O Deus anónimo
    também me deu mãos de violino
    para fabricar delicadezas a partir da cidade que me rodeia
    e o que me rodeia é esta sala que faz parte desta casa
    que habita neste bairro
    que um dia, tal como eu, também nasceu desta cidade

    Mas este poema não é sobre o meu nascimento
    É sobre a minha chegada
    Hoje eu sou aquela que chega a ela própria que aterra em si

    Hoje
    eu sou aquela que carrega os intestinos nos olhos
    е a garganta nas mãos

    Faço a digestão de todos as montras do mundo
    através dos olhos
    E respiro o mundo dos coisas e das cidades pelos pulmões das mãos.

    O delicado é
    o meu fado.

    Ana Sofia Elias (Uca, 2024)

    Imaginar

    memória é o que se vê com os olhos da imaginação.

    [no dia em que fui mais feliz]