quando desces da montanha trazes contigo o rumor dos sobreiros e o hálito agreste da urze colado à pele. há sempre um frio que te antecede, como se a geada te tivesse escolhido para corpo e manto.
eu, que me perco nas planícies, reconheço em ti a altura do que não alcanço. não desces apenas trazes um mundo em suspensão, um tremor antigo que me percorre os ossos como um bicho indizível.
o sol recua para te deixar passar. os charcos, esses, guardam o reflexo do teu riso como quem aprende a arte da claridade. e eu, que há muito deixei de esperar, espero-te. porque quando desces da montanha sinto o meu corpo regressar ao seu princípio: um sopro húmido, uma lembrança de lume, o desejo de me perder outra vez num inverno, que apesar de denso deve acolher a claridade dos cristais.
É sempre uma alegria estrear nova colaboração no projeto Fotografar Palavras Na publicação # 5369, a parceria no texto é com a Rita Bertrand.
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Eis-me, aquela que amavas, diariamente enlutada, a girar incessante no redemoinho da saudade. A pior morte é esta, a que ainda respira mas já só caminha para trás.
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Here I am, the one you loved, daily in mourning, spinning incessantly in the whirlpool of longing. This is the worst death, the one that still breathes but only walks backwards.
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Texto | Text: Rita Bertrand Fotografia | Photography: Ana Gilbert
Fotografar palavras, projeto com publicações diárias, desde 2016. Criação do Paulo Kellerman, cocriado diariamente por tod@s nós.
LEMBRETE: a 6a. exposição do Fotografar Palavras fica em cartaz no m|i|mo, em Leiria (Portugal) até o dia 9 de novembro de 2025.
Para quem não puder ir, há a exposição permanente no nosso blog. Visitem aqui.
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“Somos estrangeiros também, e principalmente, diante da nossa felicidade”.
O tempo é apenas uma sequência de acasos. A eternidade é apenas uma sequência de acasos. A existência é apenas uma sequência de acasos. Tu és apenas uma sequência de acasos.
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Time is just a sequence of coincidences. Eternity is just a sequence of coincidences. Existence is just a sequence of coincidences. You are just a sequence of coincidences.
UCA, o livro de Ana Sofia Elias, é viagem demorada, sem volta. Lisérgica. Uca é desajuste. É dor partilhada, sonho segredado, fantasia projetada. Uca é pausa, lugar de descanso inquieto, de entrega temerosa. E prazerosa. Uca é desafio da fala, é dança cantada. Dança das palavras, por vezes, descompassada. É grito mudo. Ensurdecedor. É beleza delicada e pulsante. É toque sutil. Por vezes, soco no estômago. Desdobra-nos pelo caminho e já não conseguimos refazer o origami que um dia fomos.
Uca é Ana. E esta Ana que escreve espelha a Ana que escreveu.
Anas em voo livre.
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Escantilhão
Quando eu nasci Deus entregou-me um escantilhão e, desde esse dia, tenho sido uma recortadora de vida Sigo entretida a passá-la por um escantilhão e a ser escantilhada por ela
Esse tal Deus que não tem nome – mas desceu para me visitar – deu-me olhos de lince e fome de me deslumbrar
Os olhos de lince servem para caçar as coisas delicadas que gostam de brincar às escondidas com os meros mortais para quem elas passam despercebidas e desiguais
O Deus anónimo também me deu mãos de violino para fabricar delicadezas a partir da cidade que me rodeia e o que me rodeia é esta sala que faz parte desta casa que habita neste bairro que um dia, tal como eu, também nasceu desta cidade
Mas este poema não é sobre o meu nascimento É sobre a minha chegada Hoje eu sou aquela que chega a ela própria que aterra em si
Hoje eu sou aquela que carrega os intestinos nos olhos е a garganta nas mãos
Faço a digestão de todos as montras do mundo através dos olhos E respiro o mundo dos coisas e das cidades pelos pulmões das mãos.