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“Lê a energia que está no meu silêncio.”

Palavras | Clarice Lispector (Água viva)

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“Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela.”

Palavras | Clarice Lispector (Água viva)

Extensão

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(Projeto com Paulo Kellerman)

Cena

No estúdio improvisado a câmera percorre o espaço distraidamente, parando aqui e ali sem se deter. O olho por detrás dela busca algo que o capture, há muito tempo busca. Já nem sabe quanto. Percorreu espaços, encontrou ângulos mas nenhum que o arrebatasse. Ao olho por detrás da lente. Gira… pára… torna a começar… insaciável… desamparado porque não encontra, nada-ninguém-amor-azul. Pulsa. Líquido, escorre-sofre. Pensa no que olha, não, não pensa, apenas percorre, desliza lentes como dedos, afaga, apalpa, quer ser tocado como a lente ao focar o espaço. Mas não é assim, é apenas a frieza do obturador que clique claque abre e fecha sem piedade. Comentários soltos, quase vazios. Como o olho que olha e que parece vazado.

De repente a câmera se detém.

O que tanto buscava o encontrou. O olho por detrás da câmera. Paralisado, muda o plano ajustando o foco, diminui a abertura, o tempo de exposição. O tripé, sabe que não conseguirá sustentar o olhar sem ele. A câmera escuta a si mesma e o olho no jogo dos espelhos se reconhece. Esconde-se, fecha-se, o olho que olha por detrás da câmera. Teme ser visto. Sente-se perseguido ao descobrir-se no outro.

O tempo se esgota. Pinga lentamente da torneira semi-aberta. Escoa de um reservatório que nunca é alimentado. Escoará até acabar.

Sabe que não há mais tempo. De recuperar o amor perdido, o tempo gasto em buscar, que o esgarçou até onde não podia mais e o reduziu a um olho que olha através e que busca incessantemente algo que olhar.

Texto: Ana Gilbert

Reservatório

Toca-me, diz ela.
Apenas assim me podes conhecer, diz ela.

Há pessoas que são como máquinas fotográficas, não achas? Captam tudo, captam a realidade nas suas ínfimas nuances e delicadezas, captam a luz e a sombra e tudo o que há entre luz e sombra, captam um beijo de dois amantes e o voo de um pássaro, captam a sombra de um nuvem e a magnificência do grão de areia na praia, captam a textura da pele do pescoço e da coxa e da mão daqueles que amam, captam a imutabilidade e a passagem do tempo, captam a suavidade das rugas de um velho que vai morrer mas ainda ri uma última vez, captam as dobras de um lençol impregnado com o cheiro a sexo, captam o momento mágico em que uma folha se solta da árvore e se lança no abismo da liberdade. Há pessoas que captam tudo, porque tudo é captável, tudo é fixável, tudo é registável. Basta olhar. Olhas, logo captas. Mas tal como as máquinas fotográficas que tudo captam, há pessoas incapazes de sentir, de interiorizar, de incorporar aquilo que olham e vêem. Pessoas que são como máquinas. Apenas captam e registam. Acumulam. Coleccionam. Mas não sentem. E ainda assim sorriem. Como é possível que as máquinas fotográficas sorriam? De que sorriem elas, se não sentem? Porque sorriem? Como sorriem? Não entendo. Mas sei que há pessoas que são como máquinas fotográficas. Assustam-me muito, estas pessoas.

O que pensa o teu nariz quando respira o meu cheiro? O que pensa o teu coração quando perscrutas o meu rosto? Percebo que estranhas as minhas perguntas. Talvez não saibas que cada pedaço do teu corpo tem pensamentos autónomos. O teu coração pensa, o teu sexo pensa, as tuas mãos pensam, a tua boca pensa. Infinitos pensamentos cruzam-se no teu interior, faíscam por um instante ou eternizam-se entre as células, arrastam-se, combatem-se, anulam-se, misturam-se, morrem e renascem. E tudo converge para o cérebro, onde toda essa imensidão de pensamentos antagónicos é recolhida, analisada, conjugada, resumida. E aquilo que julgas ser o teu pensamento – o teu pensamento oficial – é apenas uma breve e tosca súmula da infinidade de pensamentos que o teu corpo produz.

– Queres dizer que o cérebro aprisiona os pensamentos?

Penso com todo o corpo. Vejo com todo o corpo. Sinto com todo o corpo. Emociono-me com todo o corpo. E apenas depois fotografo. As fotografias são uma extensão de mim, do que penso e vejo e sinto e sonho e imagino e fantasio e questiono com o corpo; sempre com o corpo. Tal como um abraço é uma extensão de mim, de todo o meu corpo. Ou a dança. Gosto de dançar, tu não? Há uma convergência de tudo o que o corpo é e emana: carne, emoção, sentimento, alma; tudo convertido em movimento, em beleza, em harmonia, em liberdade. E quem me vir dançar fica a conhecer-me melhor. Quem me abraçar fica a conhecer-me melhor. Não sei se faz sentido para ti. Mas pensa assim: quando vês uma foto tirada por mim é como se me tocasses; em mim própria, no meu corpo. Olhar é tocar. Isto parece-te muito louco? Pode ser loucura. E talvez tenha havido um tempo em que me protegia atrás da máquina fotográfica; como se fosse uma cortina. Isso passou, o tempo é outro, a cena mudou. Agora: a máquina não me esconde; revela-me.

Deixa que os teus dedos me conheçam, diz ela.
Ele pega a fotografia que ela lhe estende. Vê-a com os olhos, vê-a com os dedos. Sente-a com os olhos, sente-a com os dedos. Pensa-a com os olhos, pensa-a com os dedos. Conhece-a com os olhos, conhece-a com os dedos.
É só uma foto, pensaria ele antes.
Agora sabes que não é apenas uma foto, diz ela.
E sorriem.

O tempo se esgota. Pinga lentamente da torneira semi-aberta. Escoa de um reservatório que nunca é alimentado. Escoará até acabar. Por isso é tão importante fixá-lo. Com o corpo. No corpo: é esse o verdadeiro reservatório.

Texto: Paulo Kellerman

Toda eu

“… estava permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia…”

Palavras: Clarice Lispector (A legião estrangeira, Os desastres de Sofia)

Escrita

Escrita

“escrever começa na margem”

Texto: Luísa Benevides
da palavra à imagem, da imagem à palavra

escrevo no teu corpo com as mãos
escrita trêmula, a princípio
firme, depois
inscrevo-me na tua pele
e mais fundo.
memorizo teus poros, percorro geografias,
lentamente.
aquilo que conhecerei de ti me será contado pelos meus dedos
para que possa sonhar contigo.
saberás o sonho.

Texto: Ana Gilbert

Auto-retrato 12

“Já que não me entendes, não me julgues
não me tentes…”

Palavras: Renato Russo

Tempo da ausência

“Tenho as pessoas à mão. Sei o que comem, a hora que acordam. Vejo luzinhas verdes acesas. Já estão na linha.

Sei que, às vezes, estão tristes. Quando pousam com aquele sorriso brilhante de selfie no meio de meu display. Nunca me vi no espelho dos olhos de uma selfie. Nessas horas de tristeza inconfessa, quero estender o braço. Tocá-las no ombro, sentar ao lado de seu denso silêncio. Mas o whatsapp, o messenger e o raio que o parta andam vazios de cadeiras.

Mando áudio de voz. Fecho os olhos enquanto gravo. Falo sozinha. Faço, escrevo, curto, soliloquio. Porque também tenho faltas. Falta-me a festa a que não fui. Vi toda a minha ausência pendurada nas fotos da corda de alguma rede. Falta-me a poesia que não ouvi a minha amiga dizer. O momento em que esqueceu a estrofe. Entre o desastre e a retomada do fio, pude ver o seu re-verso. Faltam-me os esquecimentos. Todos os enterros a que não fui. Li dezenas de homenagens em páginas e páginas de tela líquida. Serena-me um pouco o buraco.

Falta-me a ausência dos que mais quero, ouço, leio. Da tua prosa. Quero ler-te com o assombro de quem não foi preparado. Faltam-me os dez dias em que não vi a sombra de tua voz, o rastro amado de tua silhueta.

Como a de minha avó. Ligo toda semana.

– Como passou os dias? Está frio? Usou casaco? Comeu o quê de mais saboroso?- pergunto.

-Tudo na mesma – ela diz.

Conta-me. Sempre pela primeira vez.

Quero-te ausente. A festa, a letra, o amor.

Quanto tempo, direi. Quanto tempo, dirás. E nesse abismo entre a tua solidão e a minha angústia, te falarei, te verei o rosto. Te lerei a prosa no emaranhado das linhas da palma da mão.

E se, por acaso, este texto saltar-te aos olhos em tua imensa linha do tempo, saberás de minha enorme contradição.

O que faltar, te conto ao vivo.”

Texto: Lorena Kim Richter

“De onde surgem os gritos, como nascem?”

Fotografar palavras
Projeto e texto: Paulo Kellerman
Foto: Ana Gilbert

Palavras fotografadas, fotografias narradas…

“A vulnerabilidade de um peito que esconde um coração, um coração que esconde medos e desesperos insuspeitos para quem olha e apenas vê um peito, apesar de saber que algures há um coração.”

(Paulo Kellerman, Almas desligadas)