Dos sonhos…

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“Talvez, afinal, o propósito da vida seja a conservação dos sonhos, sendo os homens meros instrumentos da sua sobrevivência, simples receptáculos. Ou talvez sejam os sonhos, em abstracto, aquilo a que se chama deus.”

Palavras | Paulo Kellerman (As sirenes, Os mundos separados que partilhamos)

A casa

a casa bl

I

Tentava escrever

com a minha mão direita,
com a minha mão esquerda, alma corpo inteiro

[a casa, os movimentos da casa, a casa]

o osso aparente
a vértebra em silêncio,

a côdea dura do lume apagado. Tentava escrever o resíduo
a dobra da cal

descosida da sombra, a sépia

como se em silêncio o vestígio da casa
pudesse acontecer
enquanto

escrevia. E escrevia

escrevia a janela, a luz, a pedra, a brisa
o sopro da cinza vaga do livro

[era azul poema, o livro]

a mesa aberta às sobras do norte, a poalha
transparente

o sopro agitado
[nesse lume obediente]

que sabe como arder na manhã áspera

devagar. Escrevia

II

e enquanto tentava escrever
acontecia

a casa.

…………

de | esboço para | a casa

Palavras: Breve Leonardo

Loucura

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Vou até à janela para ver o mundo passar. E ele passa, vagaroso e indiferente. Talvez já tenha tido a esperança que, um dia, me levasse consigo; mas para onde me levaria? E eu gostaria de ter ido? Não sei. Da minha janela vejo o céu azul e sinto o sol no rosto. Por mais longe que o mundo me levasse, não seria sempre o mesmo sol a aquecer-me a pele? Sorrio enquanto penso isto, e é bom quando uma pessoa consegue sorrir sozinha; apesar de haver quem chame a isso loucura. Talvez ainda possa ir pelo mundo fora, em busca de outros sóis; talvez baste acreditar e imaginar que é possível. Se existe o desejo, haverá sempre a possibilidade? Por agora não quero pensar em possibilidades, basta-me sentir a realidade concreta deste sol no rosto. Para onde irá toda esta luz que a minha pele absorve? Tanto sol que apanhei ao longo da vida, certamente que o interior do meu corpo será muito iluminado, resplandecente de luz; se tiver de ser operada ainda vou cegar os médicos. Sorrio de novo, enquanto olho a rua em busca de gente. Sempre gostei de observar pessoas, sempre gostei de lhes escutar as conversas e, através das suas vozes, conhecer-lhes os pensamentos e os sentimentos. Mas agora são raras as pessoas que passam por esta rua; e as que passam nunca conversam. Não entendo por que motivo não falam, não entendo por que motivo calam os seus pensamentos; se não são verbalizados, para onde irão todos esses pensamentos que as pessoas têm dentro de si? Permanecerão aprisionados nos corpos para sempre? Formando gases, talvez. Escuto o silêncio da rua, respiro o cheiro das árvores que estão lá mais à frente. Respirá-las é uma forma de as guardar, a verdade é que tenho florestas inteiras dentro de mim; mas ninguém sabe. Talvez seja por ter tanta luz no meu interior, as árvores dão-se bem com a claridade. Sorrio. Penso tanta tolice, são sucessões de pensamentos tolos que chegam não sei de onde e me fazem sorrir. Talvez por ser essa a única forma que os pensamentos têm de sair para o mundo: agora que a trombose me levou a capacidade de falar, resta-me sorrir. E por isso, sorrio; é como se fosse uma libertação. Mas continua a não passar ninguém na rua; o céu mantém-se azul, indiferente aos meus sorrisos. Se todas as pessoas do mundo fossem cegas, haveria quem sorrisse? Ou deixariam de o fazer, por não existir quem pudesse ver esses sorrisos? Não sei; as perguntas sempre me agradaram mas as respostas causam-me azia, são como portas que se fecham com estrondo. O que sei é que gosto de sorrir ao céu azul, apesar de ele nunca me sorrir de volta. Sinto-me livre quando o faço. Olhar e sorrir, é tudo o que me resta fazer. E esperar. Espero mas a rua permanece deserta. Desconfio que estar à janela é como olhar para o futuro; mas hoje o futuro não virá. Talvez esteja confusa e me tenha baralhado, talvez não seja domingo, talvez os netos afinal não venham. Talvez o futuro seja feito de esperas. E enquanto se espera, o mundo continua a passar; vagaroso e indiferente.
(Crônica para o Jornal de Leiria)

Almas desligadas

15. O mundo 1

15. O mundo 2

15. O mundo 3

“Será que, no fundo, quando olhamos para o mundo e procuramos os outros pretendemos apenas fugir de nós? Distrairmo-nos de nós próprios? Serão os outros distracções, seremos nós distracções dos outros?”

Texto: Paulo Kellerman

O autor escreveu o romance Serviços mínimos de felicidade. Escolhi e fotografei 27 excertos. O texto acima é um desses excertos. A partir das fotos, o autor escreveu o conto Almas desligadas, que pode ser lido como um capítulo escondido do livro.

Palavras fotografadas, fotografias narradas…

“Uma mulher com um saco cheio de mundo, ou de nada, na mão.”

Texto: Paulo Kellerman (Almas desligadas)

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“O passado ganha forma neste segmento de tempo, materializa ‑se à frente dos meus olhos, como se agora as aves agitassem as asas e todo o pó suspenso, por anos e anos, nas penas e plumas se espalhasse diante da minha face, como partículas iguais a telas de cinema onde se projetam, em simultâneo, frações de um tempo muito antigo.”
….
….
Projeto: Paulo Kellerman
Texto | Joana M. Lopes

 

Sei-te

“Conspiração

Sei-te igual.
Sei-te estranho.
Sei-te de cor.
Sei-te o sal,
O odor
e o intento.
Sei-te aqui.
Sei-te aí.
Sei-te onde for.
Sei-te como ser.
Sei-te o nome.
Sei-te o rosto.
Sei-te a boca.
Sei-te o corpo.
Sei-te o sexo.
E o desejo.

E não sei
nada de ti.”

Texto: Clara Vales
Foto: Ana Gilbert

Abissal

Sofrimento da água

“… a morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da água é infinito.”

Palavras | Gaston Bachelard (As águas e os sonhos)

Auto-retrato 42

“O que fazer se a morte é um eterno estado de consciência, restrito a observar em silêncio essa escuridão?”

Palavras | Haruki Murakami (Sono)

da palavra à imagem, da imagem à palavra

Perdida
no vazio das coisas
no azul dos ladrilhos

em meio ao ruído
abafado da música
desconexo das pessoas.

Palavras | Ana Gilbert

Memória do corpo

“Como fazes quando precisas tocar as tuas próprias memórias? Tocar-lhes mesmo, com a ponta dos dedos?”

Palavras| Paulo Kellerman

da palavra à imagem, da imagem à palavra

quero tocar-me.
a minha pele
onde guardo as memórias,
(quais?)
nela, o que sei de mim
toco-me.
mas a pele é inalcançável,
etérea,
presença feita de luz
toco-me.
mas é superfície fria contra a pele quente
(sinto)
invento lembranças marcas feridas
e flores
toco-me.
no lugar onde não posso estar
(presença fugidia)
para, quem sabe,
existir em mim.

Palavras| Ana Gilbert

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“É Domingo. O dia acorda quente e os nossos corpos acusam o cansaço da semana. Sussurras-me ao ouvido: “Apeteces-me”! Permito-te.”

Projeto:  Paulo Kellerman

Texto: Ophélia Pessoa
Foto: Ana Gilbert