
miose

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“avisto a extensão de negro em que depositas
o teu coração em forma de palavras
e perco as minhas pupilas para o mar:
troco as barcas por barcos
visto os pássaros de asas gigantes
agito as águas
empresto sopros ao vento…
às vezes o ondeado das dobras da seda
negro em filamentos entremeados de luz
não deixa ver a inclinação do eixo que diz das tuas estrelas”
Palavras | Isabel Pires (a permanência da memória dos dias de sal)
Solidão


“Agora, no escuro, os objectos iluminam-se por dentro, tornando clara a nossa solidão.”
Palavras | Al Berto (O anjo mudo)
Charcoal

A borra

“Prefiro as palavras obscuras que moram nos
fundos de uma cozinha – tipo borra, latas, cisco
Do que as palavras que moram nos sodalícios –
tipo excelência, conspícuo, majestade.
Também os meus alter egos são todos borra,
ciscos, pobres-diabos
Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha – tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego Preto etc.
Todos bêbedos ou bocós.
E todos condizentes com andrajos.
Um dia alguém me sugeriu que adotasse um
alter ego respeitável – tipo um príncipe, um
almirante, um senador.
Eu perguntei:
Mas quem ficará com os meus abismos se os
pobres-diabos não ficarem?”
Palavras | Manoel de Barros (Ensaios fotográficos)
Toque

“E, de seguida, senti os seus dedos tocarem-me ao de leve, enchendo de tinta negra os contornos da minha cabeça.”
Palavras | Al Berto (O anjo mudo)

“A vida acontece depois do medo.” (anônimo)
Alma

Alma, essa manifestação intangível de que preciso para viver.

Fotografar palavras #1842

…


Incomoda-te a minha sombra? Ou a minha luz?

No caminho te ilumino.”
Projeto | Paulo Kellerman
Texto | Letícia A.

Extensão


(Projeto com Paulo Kellerman)
Cena
No estúdio improvisado a câmera percorre o espaço distraidamente, parando aqui e ali sem se deter. O olho por detrás dela busca algo que o capture, há muito tempo busca. Já nem sabe quanto. Percorreu espaços, encontrou ângulos mas nenhum que o arrebatasse. Ao olho por detrás da lente. Gira… pára… torna a começar… insaciável… desamparado porque não encontra, nada-ninguém-amor-azul. Pulsa. Líquido, escorre-sofre. Pensa no que olha, não, não pensa, apenas percorre, desliza lentes como dedos, afaga, apalpa, quer ser tocado como a lente ao focar o espaço. Mas não é assim, é apenas a frieza do obturador que clique claque abre e fecha sem piedade. Comentários soltos, quase vazios. Como o olho que olha e que parece vazado.
De repente a câmera se detém.
O que tanto buscava o encontrou. O olho por detrás da câmera. Paralisado, muda o plano ajustando o foco, diminui a abertura, o tempo de exposição. O tripé, sabe que não conseguirá sustentar o olhar sem ele. A câmera escuta a si mesma e o olho no jogo dos espelhos se reconhece. Esconde-se, fecha-se, o olho que olha por detrás da câmera. Teme ser visto. Sente-se perseguido ao descobrir-se no outro.
O tempo se esgota. Pinga lentamente da torneira semi-aberta. Escoa de um reservatório que nunca é alimentado. Escoará até acabar.
Sabe que não há mais tempo. De recuperar o amor perdido, o tempo gasto em buscar, que o esgarçou até onde não podia mais e o reduziu a um olho que olha através e que busca incessantemente algo que olhar.
Reservatório
Toca-me, diz ela.
Apenas assim me podes conhecer, diz ela.
Há pessoas que são como máquinas fotográficas, não achas? Captam tudo, captam a realidade nas suas ínfimas nuances e delicadezas, captam a luz e a sombra e tudo o que há entre luz e sombra, captam um beijo de dois amantes e o voo de um pássaro, captam a sombra de um nuvem e a magnificência do grão de areia na praia, captam a textura da pele do pescoço e da coxa e da mão daqueles que amam, captam a imutabilidade e a passagem do tempo, captam a suavidade das rugas de um velho que vai morrer mas ainda ri uma última vez, captam as dobras de um lençol impregnado com o cheiro a sexo, captam o momento mágico em que uma folha se solta da árvore e se lança no abismo da liberdade. Há pessoas que captam tudo, porque tudo é captável, tudo é fixável, tudo é registável. Basta olhar. Olhas, logo captas. Mas tal como as máquinas fotográficas que tudo captam, há pessoas incapazes de sentir, de interiorizar, de incorporar aquilo que olham e vêem. Pessoas que são como máquinas. Apenas captam e registam. Acumulam. Coleccionam. Mas não sentem. E ainda assim sorriem. Como é possível que as máquinas fotográficas sorriam? De que sorriem elas, se não sentem? Porque sorriem? Como sorriem? Não entendo. Mas sei que há pessoas que são como máquinas fotográficas. Assustam-me muito, estas pessoas.
O que pensa o teu nariz quando respira o meu cheiro? O que pensa o teu coração quando perscrutas o meu rosto? Percebo que estranhas as minhas perguntas. Talvez não saibas que cada pedaço do teu corpo tem pensamentos autónomos. O teu coração pensa, o teu sexo pensa, as tuas mãos pensam, a tua boca pensa. Infinitos pensamentos cruzam-se no teu interior, faíscam por um instante ou eternizam-se entre as células, arrastam-se, combatem-se, anulam-se, misturam-se, morrem e renascem. E tudo converge para o cérebro, onde toda essa imensidão de pensamentos antagónicos é recolhida, analisada, conjugada, resumida. E aquilo que julgas ser o teu pensamento – o teu pensamento oficial – é apenas uma breve e tosca súmula da infinidade de pensamentos que o teu corpo produz.
– Queres dizer que o cérebro aprisiona os pensamentos?
Penso com todo o corpo. Vejo com todo o corpo. Sinto com todo o corpo. Emociono-me com todo o corpo. E apenas depois fotografo. As fotografias são uma extensão de mim, do que penso e vejo e sinto e sonho e imagino e fantasio e questiono com o corpo; sempre com o corpo. Tal como um abraço é uma extensão de mim, de todo o meu corpo. Ou a dança. Gosto de dançar, tu não? Há uma convergência de tudo o que o corpo é e emana: carne, emoção, sentimento, alma; tudo convertido em movimento, em beleza, em harmonia, em liberdade. E quem me vir dançar fica a conhecer-me melhor. Quem me abraçar fica a conhecer-me melhor. Não sei se faz sentido para ti. Mas pensa assim: quando vês uma foto tirada por mim é como se me tocasses; em mim própria, no meu corpo. Olhar é tocar. Isto parece-te muito louco? Pode ser loucura. E talvez tenha havido um tempo em que me protegia atrás da máquina fotográfica; como se fosse uma cortina. Isso passou, o tempo é outro, a cena mudou. Agora: a máquina não me esconde; revela-me.
Deixa que os teus dedos me conheçam, diz ela.
Ele pega a fotografia que ela lhe estende. Vê-a com os olhos, vê-a com os dedos. Sente-a com os olhos, sente-a com os dedos. Pensa-a com os olhos, pensa-a com os dedos. Conhece-a com os olhos, conhece-a com os dedos.
É só uma foto, pensaria ele antes.
Agora sabes que não é apenas uma foto, diz ela.
E sorriem.
O tempo se esgota. Pinga lentamente da torneira semi-aberta. Escoa de um reservatório que nunca é alimentado. Escoará até acabar. Por isso é tão importante fixá-lo. Com o corpo. No corpo: é esse o verdadeiro reservatório.
Texto: Paulo Kellerman
Almas desligadas

“Será que se deixar de me olhar ao espelho conseguirei esquecer o meu rosto? Conseguirei esquecer como sou, o que sou, quem sou? Conseguirei esquecer-me?”
Texto: Paulo Kellerman
O autor escreveu o romance Serviços mínimos de felicidade. Escolhi e fotografei 27 excertos. O texto acima é um desses excertos. A partir das fotos, o autor escreveu o conto Almas desligadas, que pode ser lido como um capítulo escondido do livro.
Palavras fotografadas, fotografias narradas…
“Um rosto escondido pela escuridão porque a luz que ilumina a vida nunca é suficiente.”
Texto: Paulo Kellerman (Almas desligadas)

“Nunca tinha pensado que o silêncio de uma casa pudesse ser tão monótono, tão escuro, tão desolador.”
Bicho

Dizem que à noite o bicho vem
E vem.
Abre sua larga garganta e me expulsa do sono
Faz-me rondar pela noite insone,
palpitar angústia aguda
Encharca a cama com cheiro de morte
E os meus olhos vivos
enxergam finitude
Dizem que à noite o bicho vem
E vem.
Mas
às vezes
apenas se deita ao meu lado
e chora
por ser tão bicho assim.
Palavras: Lorena Richter

“Sinto a solidão na inteireza do corpo. Nas mãos o desamparo lê-se evidente.”

“Nunca tinha pensado que a solidão pudesse ser não uma ausência de tudo mas a saturação de presenças fantasmagóricas, de pensamentos solidificados, de imagens resplandecentes de cor e brilho e magnetismo.”

