Diz o meu nome pronuncia-o como se as sílabas te queimassem os lábios sopra-o com a suavidade de uma confidência para que o escuro apeteça para que se desatem os teus cabelos para que aconteça
Porque eu cresço para ti sou eu dentro de ti que bebe a última gota e te conduzo a um lugar sem tempo nem contorno
Porque apenas para os teus olhos sou gesto e cor e dentro de ti me recolho ferido exausto dos combates em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável procura o interior e o avesso da aparência porque o tempo em que vivo morre de ser ontem e é urgente de navegar outro rumo outro pulsar para dar esperança aos portos que aguardam pensativos
No húmido centro da noite diz o meu nome como se eu te fosse estranho como se fosse intruso para que eu mesmo me desconheça e me sobressalte quando suavemente pronunciares o meu nome
Escovar os dentes após todas as refeições, disseram-me. E, desde muito cedo, eu aprendi esta regra básica de higiene. E continuo a cumpri-la, mesmo quando uma parte da frase está ausente. Refeições. Escovo os dentes com um resto de escova, um resto de pasta, um resto de água, a escorrer, morna, de um copo descartável, que guardo cuidadosamente no meu armário de inventar. Esfrego bem os dentes, as gengivas, a língua. Até sentir ânsia de vômito. Mas não tenho o que vomitar. Na verdade, não sei se essa vontade de vomitar é pelo escovar da língua, pelo estômago vazio, ou por essas pessoas que comem ali, naquele café, e se divertem. Imagino o que conversam, imagino o som dos risos, as pernas que se tocam, discretas, por baixo da mesa, insinuando amanhãs, essa palavra que vou esquecendo o significado aos poucos. Ninguém vai querer me tocar, não desse jeito. Mas talvez eu ainda tenha esperança e, por isso, escove os dentes. Durmo perto desse café por causa do cheiro de pão recém-saído do forno, logo de manhã cedo e da refeição que recebo depois. Cheiro de uma infância feliz, ou quase. Na minha rotina de todos os dias, guardo o meu colchão de papelão num espaço estreito entre dois edifícios, que faço de esconderijo. As brechas me fazem sentir seguro. Como naquela vez. O coração batendo forte, as pernas cansadas de correr, o peso da mão na minha perna. Preciso voltar a escovar os dentes. Até enjoar, porque o estômago está vazio de novo. Olho a água que escorre pela sarjeta, com espuma de pasta e cuspe. E penso nesta imensidão que é a rua. O jeito que a água faz um pequeno redemoinho perto do bueiro me confunde e me faz pensar naquele dia. O revoar no colo de alguém, para depois tombar, num abismo sem fim. A velha dor na perna. A sujeira nos dentes. O estômago vazio. A ânsia. Um riso ao longe e a mulher que passa e me olha. Ela tem um olhar que penetra. Vê as minhas feridas. Encaramo-nos por momentos, a escova suspensa, a baba a escorrer. Os olhos lacrimejam. Ela sabe o que eu sei. O redemoinho dá mais uma volta e tudo é invadido de branco. Ao longe, uma sirene.
(Prêmio Off Flip 2024, categoria Conto)
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Afirmação
tenho a pele marcada da roupa da idade de ti
nem sei
tenho o prazer tatuado em mim como um rastro que deixaste ainda ontem ou anteontem
nem sei
tenho o sonho escondido nas dobras a busca entranhada na alma a vontade de seguir sem ti
FOTOGRAFAR PALAVRAS é um projeto especial, criado pelo querido Paulo Kellerman em 2016, e que continua a empolgar e surpreender com as múltiplas imagens que as palavras revelam. Um orgulho enorme fazer parte do coletivo. Participar é sempre uma declaração de amor ao projeto.
[Fotografar palavras is a special project, created by dear Paulo Kellerman in 2016, and it continues to excite and surprise with the multiple images that words reveal. I’m immensely proud to be part of the collective. Participating is always a declaration of love for the project.
Today’s collaboration is with my friend Fred Fullerton | Photos by me]
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Amor como um Enigma
O amor permanece um enigma para muitas pessoas porque ele pode trazer infinita alegria para uma pessoa e um sofrimento devastador para outra.
O amor pode acender instantaneamente quente e intenso como um incêncio e então extinguir-se num instante deixando em seu rastro um deserto de aflição e luto.
O amor pode confundir e sobrecarregar aqueles que lutaram e falharam nesse trio clichê- casamento separação divórcio
enquanto testemunham casais que se apaixonaram jovens e permaneceram apaixonados devotados um ao outro até a morte.
Outros, ainda, vivem sem essas buscas e escolhem a abstinência ascética ou se acomodam com amizades
coloridas.
Love As An Enigma
Love remains an enigma to many people because it can bring infinite joy to one and devastating misery to another.
Love can flare instantaneously hot and intense as a wildfire then burn itself out in a flash leaving in its wake a wasteland of woe and mourning.
Love can puzzle and burden those who’ve floundered and failed in that clichéd trifecta— marriage separation divorce
while witnessing couples who fell in love young and remained in love devoted to each other until they died.
Still others do without such quests and choose ascetic abstinence or settle with friendships
quero tocar-me. a minha pele onde guardo as memórias, (quais?) nela, o que sei de mim toco-me. deslizo dedos molhados de saliva e a pele é animal arisco arrepia-se, elétrica (tesão) toco-me presença feita de luz é superfície trêmula contra a pele quente (sinto) invento lembranças marcas gozos e flores toco-me. do jeito que sabes perto da janela (esvoaçante) exposta a olhares em ritmos aquosos palpitantes (presença entumescida) toco-me na madrugada insone silenciosa percorro relevos rios e fontes mergulho profundo (respiração entrecortada) reverbero em camadas suspensa e existo em mim.
[poema apresentado no Sarau Maroto | Lisboa 18 Out 24]
O Sol quando se põe, desce devagar e sem pressa, mas mais depressa do que quando nasce, a queda é sempre mais veloz.
The Sun, when it sets, descends slowly and without haste, yet swifter than when it rises; the fall is always faster.
Texto | Text: Sara Viscondessa Fotografia | Photography: Ana Gilbert
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O nosso querido projeto FOTOGRAFAR PALAVRAS é uma criação do amigo Paulo Kellerman, que edifica diariamente (com muito trabalho e arte) esta moldura onde podemos existir com as nossas obras e as de outra(o)s artistas. Desde 2016.
Agora que já aqui não estás, agora que nunca estiveste, a saudade nova entrelaça os dedos nos dedos da saudade antiga. Juntos sob o lençol de silêncio imaculado e morno, tecem o fino, frágil manto da memória.
if nature dries up, the aridity is ours if the forest burns, we burn if flight ceases, we plummet we die slowly of shame of boredom of exhaustion petrified in agony sleepless motionless shattered by horror convinced that it’s not us
se a natureza seca, a aridez é nossa se a floresta queima, queimamos nós se o voo cessa, despencamos nós morremos lentamente de vergonha de tédio de cansaço petrificados em agonia insones inertes despedaçados pelo horror convencidos de que não somos nós