“ Estou farto de portas fechadas” | Ensaio

O presente ensaio celebra os 150 anos de nascimento de Carl G. Jung e seu brilhante entendimento do ser humano como ser criativo.

O texto aborda o tema da ética de hospitalidade em análise. Para tanto, parte da arte, mais especificamente, da ópera contemporânea portuguesa O Tempo (Somos nós), cujo libreto é de autoria de Paulo Kellerman, para iluminar a prática clínica, tendo por base o texto O Banquete, de Platão, em articulação com a psicologia analítica.

Tanto na ópera quanto no processo analítico, Eros surge como fenômeno mais amplo, capaz de restaurar uma possibilidade criativa que reacende a alma, enquanto lugar da experiência do indivíduo, e de integrar aspectos dissociados da psique individual e coletiva.

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This paper examines the subject of hospitality in analysis. It starts from art, more specifically the contemporary Portuguese opera Time (As we are), whose libretto was written by Paulo Kellerman, to illuminate the clinical activity based on Plato’s Symposium, in articulation with the analytical psychology.

Both in the opera and in the analytical process, Eros emerges as a broader phenomenon, capable of restoring a creative possibility that rekindles the soul as a locus for the individual experience, and of integrating dissociated aspects of the individual and the collective psyche. 

TEXTO COMPLETO PARA DOWNLOAD AQUI

O TEMPO (Somos Nós)

O TEMPO (Somos Nós)

Ópera na Prisão | Traction – SAMP

Libretista: Paulo Kellerman

“Porque vamos? Porque ficamos? Porque esperamos?”

Porta e viagem. Tempo e memória. Espera.

Trabalho, muito trabalho; esforço conjunto. O resultado: um espetáculo multimídia, complexo e denso, como o tema, envolvendo músicos profissionais e jovens detentos, atuações presenciais e remotas. O tema é o tempo, em seus desdobramentos de espera e viagem. O contexto onde esse tema se desenrola é a prisão: a externa, palpável, do domínio da justiça (o Estabelecimento Prisional de Leiria, Portugal), onde jovens estão à espera. E também a(s) interna(s): a das escolhas, a das ilusões, a da inconsciência, a dos valores coletivos. As portas que se nos apresentam no decorrer da vida.

“Estou farto de portas fechadas”, diz o coro.

Mas como abrir as portas? Como perceber que estamos a atravessar portas, ou a fechá-las? Como suportar ver as possibilidades e os limites? As seduções, os enganos, as necessidades, as insatisfações?

Tendo o mito de Ulisses e Penélope como fio condutor, a ópera nos guia por entre símbolos e metáforas e nos oferece a oportunidade de refletir sobre a forma como existimos no mundo, sobre a nossa relação com o tempo (ser humano é existir no tempo e no espaço), sobre a perspectiva de diferenciação entre indivíduo e coletividade. Sobre as nossas certezas protetoras. Sobre as nossas fraquezas. O espetáculo nos desestabiliza e emociona. E também nos faz sorrir em seus momentos de leveza.

O coro repete:

“Abre os olhos.” | “Estás preso e nem sabes.”

As tentações para não ver são muitas. O trabalho de consciência é constante. Exige esforço, exige escuta; é solitário. Ser cego pode ser, aparentemente, mais fácil. A lembrança de onde estamos nos faz pensar em voos, em fuga (em algum momento, fugimos todos), em regresso. Para enfrentar.

O amor surge como a luz da consciência, que não nos deixa esquecer quem somos;  como a conexão com a alma, essa instância profunda do humano, capaz de nos libertar da prisão do tempo. 

“Somos nós que fazemos o tempo. Nós é que somos a consciência do tempo.”

[assisti à estreia do espetáculo, no dia 4 de junho, no Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens. E, para mim, o espaço foi consciência.]