
Obrigada por tanto.

Obrigada por tanto.

“A memória não lhe veio aos poucos, despencou como uma avalanche na sua cabeça”.
Ghassan Kanafani (Retorno a Haifa)

All memories are traces of tears.
Wong Kar Wai (2046)




certas memórias existem apenas no corpo.
some memories exist only in the body.
Texto | Text: Ana Gilbert
Fotografia | Photography: Gunlög Mjörnheden
Fotografar Palavras, a casa que nos recebe. Um projeto criado pelo Paulo Kellerman em 2016.

[engarrafamentos na memória]

certas memórias existem apenas no corpo.
some memories exist only in the body.


Por vezes, o tempo se esquece do tempo.



Libertar a alma.


“n.º 30
Regresso uma e outra vez à casa da minha infância. Os cheiros, os esconderijos, os lugares de cada coisa e de cada um mantêm-se, ainda, inalterados.
Evito o caminho para o interior. Subo a escada e recordo a textura do cimento fresco. Degrau a degrau, subo e penso nas inúmeras vezes que os pisei, que os meus os terão pisado. Sei as reentrâncias, os desníveis, as imperfeições. Dos degraus. Dos meus. As minhas.
Cá em cima é mais fácil respirar. Ainda assim, desvio o olhar da porta do sótão: preta, ferrugenta, retorcida. Encerra demasiada ruína, como se um cemitério de nós próprios habitasse sobre os espaços em que vivemos.
Aguardo o escurecer e contemplo o horizonte: o parque florestal, o pinhal ao fundo… e, naquele momento em que o silêncio se instala, o som do nosso mar sobrepõe-se a todas as camadas dos meus sentidos.
Elevo o olhar e procuro no escuro a segurança de tantas noites ali passadas. Encontro o norte… brilho ténue, guia de viagens difusas memória dentro. Uma âncora no firmamento, como se todo o universo nele se sustivesse, como se todo o meu viver nesta casa nele se suportasse.
Sento-me. Inspiro. Deito-me no chão rugoso e frio, sinto o desconforto no corpo e nas memórias que trago comigo. Abro os olhos para a imensidão e, por fim, entro.”
Fotografar palavras, projeto criado pelo Paulo Kellerman em 2016. Projeto criado por nós, diariamente.
Texto da Vilma Duarte, foto minha.



O TEMPO (Somos Nós)
Ópera na Prisão | Traction – SAMP
Libretista: Paulo Kellerman
“Porque vamos? Porque ficamos? Porque esperamos?”
Porta e viagem. Tempo e memória. Espera.
Trabalho, muito trabalho; esforço conjunto. O resultado: um espetáculo multimídia, complexo e denso, como o tema, envolvendo músicos profissionais e jovens detentos, atuações presenciais e remotas. O tema é o tempo, em seus desdobramentos de espera e viagem. O contexto onde esse tema se desenrola é a prisão: a externa, palpável, do domínio da justiça (o Estabelecimento Prisional de Leiria, Portugal), onde jovens estão à espera. E também a(s) interna(s): a das escolhas, a das ilusões, a da inconsciência, a dos valores coletivos. As portas que se nos apresentam no decorrer da vida.
“Estou farto de portas fechadas”, diz o coro.
Mas como abrir as portas? Como perceber que estamos a atravessar portas, ou a fechá-las? Como suportar ver as possibilidades e os limites? As seduções, os enganos, as necessidades, as insatisfações?
Tendo o mito de Ulisses e Penélope como fio condutor, a ópera nos guia por entre símbolos e metáforas e nos oferece a oportunidade de refletir sobre a forma como existimos no mundo, sobre a nossa relação com o tempo (ser humano é existir no tempo e no espaço), sobre a perspectiva de diferenciação entre indivíduo e coletividade. Sobre as nossas certezas protetoras. Sobre as nossas fraquezas. O espetáculo nos desestabiliza e emociona. E também nos faz sorrir em seus momentos de leveza.
O coro repete:
“Abre os olhos.” | “Estás preso e nem sabes.”
As tentações para não ver são muitas. O trabalho de consciência é constante. Exige esforço, exige escuta; é solitário. Ser cego pode ser, aparentemente, mais fácil. A lembrança de onde estamos nos faz pensar em voos, em fuga (em algum momento, fugimos todos), em regresso. Para enfrentar.
O amor surge como a luz da consciência, que não nos deixa esquecer quem somos; como a conexão com a alma, essa instância profunda do humano, capaz de nos libertar da prisão do tempo.
“Somos nós que fazemos o tempo. Nós é que somos a consciência do tempo.”
[assisti à estreia do espetáculo, no dia 4 de junho, no Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens. E, para mim, o espaço foi consciência.]


“Todas as noites sonho memórias novas.”
Fotografar palavras
Projeto e texto | Paulo Kellerman
Fotos | Ana Gilbert
Cumplicidade entre imagens e palavras, entre afetos e talentos


“O que é que se responde a uma filha que nos pergunta como estamos, de quem não se tem notícias há anos? Responde-se: estou bem?”
Oh Senhor Luís!, de Sandrine Cordeiro, na Antologia Minimalista (2020)

“Entra na sala; vê a cortina vermelha e sente-lhe a textura entre os dedos; inspira o cheiro quente e amargo das fitas nas bobines; respira a mistura do amadeirado doce das cadeiras; aceita o mofo sereno das alcatifas. E vê a lanterna. No cimo do balcão da entrada, enche-se de luz a piscar. Com ela, regressa à sala. Senta-se na primeira cadeira da última fila e olha o ecrã.”
Os meus dias são domingos, de Ana Miguel Socorro, na Antologia Minimalista (2020)


“Tudo quanto desejei, toda a fome, se resumiu a uma palavra, uma que fosse, que soasse à verdade.”
Foto minha e texto da querida Andreia Azevedo Moreira.
Fotografar palavras, um projeto de Paulo Kellerman.
5 anos de projeto, 3000+ publicações



“Como se respira o mesmo ar e não se cria a mesma memória?”
Fotografar palavras
Projeto | Paulo Kellerman
Texto | Catarina Vale
Fotos | Ana Gilbert

tempo de um tempo sem tempo