Todas as imagens

_“Todas as imagens vão desaparecer.
(…)
as imagens reais ou imaginárias, que permanecem conosco durante o sono”

Annie Ernaux (Os anos)

Canto visivo

“…questo canto visivo
è di chi crede
…”

[this visual song
belongs to those who believe
]

Barrio Gotico (Corde Oblique)

Opinião

Ao escrever sobre o livro, “A respiração do tempo”, detenho-me no título. O tempo como organismo vivo. Que respira.
Reparem que não há humanos sem tempo. O tempo é uma estrutura essencial. E este livro começa logo por evidenciar isso.
O livro, muito cedo, entra pelo desejo, na sua relação com a imaginação, ou com a fantasia. Mostrando como o êxtase precisa dessa centelha para existir.
E vai por ali fora, sempre poderoso. Mostra-nos não aquele humano perfeitinho, mas aquele que sofre e faz sofrer. Aquele que por vezes vive quase sem poder.
O prazer e a dor estão muito presentes na narrativa.
É um livro carregado de interioridade. Com a psique das personagens muito à mostra.
Não estamos perante personagens planas, sentimos a sua riqueza e toda a força das suas circunstâncias. Vou dar um pequeno exemplo:
“Uma mulher observa a cena e, como os cães, fareja a ameaça. Ela, uma dessas mulheres violadas por seu homem. Ela e o seu grito mudo.
Ao sinal invisível, os homens começam a disparar. Descarregam armas, como uma ejaculação colectiva, fruto de um gozo inominável.”
A água é também um elemento constante. Há uma qualquer relação entre o mar e a morte. Que vai sobrevindo.
É um livro que tem arrojo, risco por parte da sua autora. Exposição. Verdade.
Na linguagem tem a sua música. As suas escolhas. Uma pontuação própria. Um sentir da língua, em balanço, em movimento.
Tenho uma teoria: um livro interessante tem de partir de alguém interessante. E este livro é mais uma demonstração desta minha teoria. Quanto deste livro é esta autora? O que pensa? Como pensa? O que observa? O que encontra? Que detalhes? Que linguagem? Que relações estabelece entre tudo?
O livro beneficia de toda essa riqueza.
Por todas estas razões, e aquelas ainda por descobrir (porque cada leitor fará o seu livro), é uma boa ideia ler este “A respiração do tempo”.

Mónia Camacho

Livro

A RESPIRAÇÃO DO TEMPO | Sinopse

Os fios do tempo, como artérias do corpo, como galhos rizomáticos, espalham-se, pulsantes, em forma de palavras. Peso e leveza, prazer e dor, angústia e sentido. Perda, encontro, memória. Lugares luminosos e sombrios da alma. Os contos de A Respiração do Tempo atravessam esses temas, numa costura quase imperceptível, mas inquietante. Evocam um repertório de imagens, um catálogo de sensações, pensamentos e emoções que permeiam as relações humanas.

Uma publicação Minimalista Editora

Encomendas: minimalista.editora@gmail.com

Fotografar palavras #2564

“A minha casa existe em partes de luz e sombra, de ausência e dor. Existe à beira do mundo, das coisas, assim, em pedaços. Como uma flecha que se divide ao ser lançada ao espaço, num gesto autônomo que acontece por si.
Escrevo em busca da casa inteira, das imagens que levantarão as paredes, que completarão a costura, que anteciparão a quebra.”
 
 
Fotografar palavras
Projeto | Paulo Kellerman
Texto | Ana Gilbert
Foto | Francisco Válga

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(obrigada, Francisco, por aceitares o desafio. Obrigada, Paulo, pela acolhida)

Fotografar palavras #2366

“- Espero que continues liberta e inspirada e que esta chuvinha ilumine e fertilize o teu sentir.
– Há que procurar inspiração todos os dias… Beijinho agradecida pela tua bonita mensagem!…
– As mensagens bonitas são para as meninas bonitas, aquelas com música de folhas, flores e frutos sem romance. Beijinho perfumado a terra molhada…
– Uau! Não tenho palavras nem tenho essa veia artística, poética!… Apenas entendo a linguagem das plantas.
– A linguagem das plantas é escrita poética em estado de graça, e a teu gracioso modo também tu libertas essa poesia da terra.
– A sensibilidade com que lidamos com elas não é comum a toda a gente?
– A sensibilidade é um dom de pessoas raras. E elas sentem essa luz umas nas outras. É uma paixão de flores e planetas.
– É bem possível. Concordo.”

Fotografar palavras
Projeto | Paulo Kellerman
Texto | José Alberto Vasco
Foto| Ana Gilbert

Zona crepuscular

É fim de tarde, o sol desce no horizonte e traz aquele silêncio de um tempo limítrofe. A água do mar me chama, num apelo surdo, hipnótico. Entro devagarinho e sinto o silêncio; sobe cálido pelos pés, pernas, contornos, sexo, cintura. Mergulho e a água envolve-me como um afago. Sinto o corpo distensionar, músculo a músculo, fibra a fibra, poros e pensamentos. Inspiro e o silêncio me penetra, ecoa pelo corpo, expande os pulmões, aquieta a pulsação, suspende o tempo. O vento sopra solidão sobre a pele.

Mexo mãos e pés, deslizo dedos sobre superfícies imaginárias, o teu corpo, o meu. Os olhos fechados tornam-se lúcidos; voltam-se para outro mundo, aquele que deixei há tantas vidas. Nele me encontro, e vejo-te, à espera. Estiveste sempre aí? O toque se materializa e sinto: são arraias, grandes e pequenas, várias, muitas, numa dança etérea, um voo fora do ar. Circundam-me, algumas se enterram na areia, como ouro profundo à espera de revelação. Ondulo como elas, voo com elas, deixo-me ficar, entregue a essa liberdade momentânea. Nossas superfícies se encontram, num prazer mútuo.

Subitamente, algo me faz abrir os olhos. Anoiteceu sem que me desse conta. A maré subiu, a água que chegava à cintura quase me cobre inteira. Perdi-me em devaneios e me desnorteei. Volto-me sobressaltada à procura da praia, da textura da areia, da referência. Tenho medo de ser levada pela correnteza. As arraias continuam a nadar, alheias ao meu pânico; elas que eram parte de mim, agora me parecem estranhas, ameaçadoras. Não consigo tocar a areia; engulo a água salgada, engasgo-me. Sinto falta de ar e preciso me concentrar para não afundar por completo. Os olhos abertos não servem para muito na escuridão da realidade. A noite acontece dentro de mim e já não estás.

Percebo que me estou a mover, um nado instintivo que me tira do desespero. Aliviada, agora sei onde está a praia e esforço-me na intenção de chegar até lá. Ganho ritmo, a respiração torna-se cadenciada; a praia está logo ali, à frente, penso, e quase consigo sentir um pouco do prazer de antes. Nado mais e mais, porém algo está diferente, desestabiliza a determinação. Começo a duvidar da direção que escolhi; volto a olhar em redor e não distingo nenhuma silhueta, nenhum vestígio de terra firme. Constato que me enganei: nadei em direção ao mar aberto e não chegarei a lugar algum. O tempo cai pesado sobre mim, empurrando-me para baixo. A exaustão toma conta e já não há volta possível. As arraias voltam a circundar-me; aprisionam-me, fantasmáticas. Fecho novamente os olhos antes da entrega. E penso em ti.

Texto e foto | Ana Gilbert

2000

O blog Fotografar palavras, criado pelo escritor Paulo Kellerman, chega às duas mil publicações. O que começou como uma brincadeira entre amigos envolve, hoje, cento e quinze pessoas, numa parceria profícua entre imagem e palavra, estilos e talentos. Tornou-se uma casa para seus colaboradores e para todos os que apreciam o entrelaçamento entre fotografia e literatura; um lugar de estímulo à arte que afeta e emociona, e ao qual queremos sempre retornar.

Um imenso obrigada a todos.