Gosto

Gosto de cruzar as fronteiras.

Olga Tokarczuk (Sobre os ossos dos mortos)

quando desces da montanha

quando desces da montanha
trazes contigo o rumor dos sobreiros
e o hálito agreste da urze colado à pele.
há sempre um frio que te antecede,
como se a geada te tivesse escolhido
para corpo e manto.

eu, que me perco nas planícies,
reconheço em ti a altura do que não alcanço.
não desces apenas
trazes um mundo em suspensão,
um tremor antigo que me percorre os ossos
como um bicho indizível.

o sol recua para te deixar passar.
os charcos, esses, guardam o reflexo do teu riso
como quem aprende a arte da claridade.
e eu, que há muito deixei de esperar,
espero-te.
porque quando desces da montanha
sinto o meu corpo regressar ao seu princípio:
um sopro húmido, uma lembrança de lume,
o desejo de me perder outra vez
num inverno, que apesar de denso
deve acolher a claridade dos cristais.

Poema | Rui Coutinho

FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5369

É sempre uma alegria estrear nova colaboração no projeto Fotografar Palavras
Na publicação # 5369, a parceria no texto é com a Rita Bertrand.

Eis-me, aquela que amavas, diariamente enlutada,
a girar incessante no redemoinho da saudade.
A pior morte é esta, a que ainda respira
mas já só caminha para trás.

Here I am, the one you loved, daily in mourning,
spinning incessantly in the whirlpool of longing.
This is the worst death, the one that still breathes
but only walks backwards.

Texto | Text: Rita Bertrand
Fotografia | Photography: Ana Gilbert

Fotografar palavras, projeto com publicações diárias, desde 2016. Criação do Paulo Kellerman, cocriado diariamente por tod@s nós.

LEMBRETE: a 6a. exposição do Fotografar Palavras fica em cartaz no m|i|mo, em Leiria (Portugal) até o dia 9 de novembro de 2025.

Para quem não puder ir, há a exposição permanente no nosso blog. Visitem aqui.

“Somos estrangeiros também, e principalmente, diante da nossa felicidade”.

Emanuele Coccia (Filosofia da casa, 2024)

vazios

já não há santos nos oratórios.

[Gaza também é aqui]

there are no saints left in the shrines.

[Gaza is here too]

Apenas

O tempo é apenas uma sequência de acasos. A eternidade é apenas uma sequência de acasos. A existência é apenas uma sequência de acasos. Tu és apenas uma sequência de acasos.

***

Time is just a sequence of coincidences. Eternity is just a sequence of coincidences. Existence is just a sequence of coincidences. You are just a sequence of coincidences.

Text: Paulo Kellerman

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Uca

UCA, o livro de Ana Sofia Elias, é viagem demorada, sem volta.
Lisérgica.
Uca é desajuste.
É dor partilhada, sonho segredado, fantasia projetada.
Uca é pausa, lugar de descanso inquieto, de entrega temerosa. E prazerosa.
Uca é desafio da fala, é dança cantada.
Dança das palavras, por vezes, descompassada.
É grito mudo.
Ensurdecedor.
É beleza delicada e pulsante.
É toque sutil. Por vezes, soco no estômago.
Desdobra-nos pelo caminho e já não conseguimos refazer o origami que um dia fomos.

Uca é Ana.
E esta Ana que escreve espelha a Ana que escreveu.

Anas em voo livre.

***

Escantilhão

Quando eu nasci
Deus entregou-me um escantilhão e, desde esse dia, tenho sido uma recortadora de vida
Sigo entretida
a passá-la por um escantilhão
e a ser escantilhada por ela

Esse tal Deus que não tem nome – mas desceu para me visitar –
deu-me olhos de lince
e fome de me deslumbrar

    Os olhos de lince servem para
    caçar as coisas delicadas
    que gostam de brincar às escondidas
    com os meros mortais
    para quem elas passam despercebidas
    e desiguais

    O Deus anónimo
    também me deu mãos de violino
    para fabricar delicadezas a partir da cidade que me rodeia
    e o que me rodeia é esta sala que faz parte desta casa
    que habita neste bairro
    que um dia, tal como eu, também nasceu desta cidade

    Mas este poema não é sobre o meu nascimento
    É sobre a minha chegada
    Hoje eu sou aquela que chega a ela própria que aterra em si

    Hoje
    eu sou aquela que carrega os intestinos nos olhos
    е a garganta nas mãos

    Faço a digestão de todos as montras do mundo
    através dos olhos
    E respiro o mundo dos coisas e das cidades pelos pulmões das mãos.

    O delicado é
    o meu fado.

    Ana Sofia Elias (Uca, 2024)

    Imaginar

    memória é o que se vê com os olhos da imaginação.

    [no dia em que fui mais feliz]

    Justo agora

    Eu ouvi você
    Me dizer que sim
    Mas era silêncio o que se ouvia
    Quando dei por mim

    Agora
    Logo agora
    Justo agora

    Adriana Calcanhotto (Justo agora)