“A casa voltou a reinar, segura da sua força. Bem no meio tem um coração. Uma iluminação que não se sabe de onde vem. E sou capaz de passar horas a banhar-me nesse conforto. Por vezes, a casa murmura o teu nome.”
A casa na praia, de Mónia Camacho, na Antologia Minimalista (2020)
“Entra na sala; vê a cortina vermelha e sente-lhe a textura entre os dedos; inspira o cheiro quente e amargo das fitas nas bobines; respira a mistura do amadeirado doce das cadeiras; aceita o mofo sereno das alcatifas. E vê a lanterna. No cimo do balcão da entrada, enche-se de luz a piscar. Com ela, regressa à sala. Senta-se na primeira cadeira da última fila e olha o ecrã.”
Os meus dias são domingos, de Ana Miguel Socorro, na Antologia Minimalista (2020)
“Não sabia porquê, nem lhe parecia importante, mas as palavras e todos os medos, que se recusavam sair pela boca, dançavam livremente pelos dedos, como através de uma corda oca.”
De Aardonyx a Zupaysaurus, de Lia Wolf, na Antologia Minimalista (2020)
“O céu começava a clarear timidamente, iluminando os oito elementos que se reuniam para florir todas as ruas da aldeia. A tarefa teria de ser cumprida antes do nascer do sol, para garantir boa fortuna a todos os habitantes da terra.”
As flores de maio, conto de Ana Moderno na Antologia Minimalista
Tenho os olhos fechados, mas sou capaz de ver (ou imaginar?) as minhas velhas asas, as saliências por onde brotam nas costas. Ainda lembro o misto de espanto e tristeza quando descobri esses pequenos brotos em mim e percebi a condenação.
Excerto do meu conto, O último voo (Selo Off Flip, 2021)
“Um raio de sol espreita pela janela, fere-me a pele. Acordei há muito tempo mas ainda não fui capaz de abrir os olhos; porque quando o fizer, terei que enfrentar o mundo.”
Paulo Kellerman (Diz-me o teu nome, pergunta-me o meu, Gastar palavras, Deriva, 2005)
A Minimalista esteve durante uma semana no podcast Dias Úteis, uma produção da Associação de Ideias: nossas vozes e excertos dos nossos textos, da nossa “prosa poética”.
Um enorme agradecimento ao Filipe Lopes, pelo desafio, pela parceria e pelo esforço para viabilizar os episódios!
Um excerto do meu conto Despedida pode ser escutado aqui.
Num mundo de meias vidas e vidas pela metade, ele era o rei e senhor.
Trabalhava pela metade, não fosse ficar demasiado afadigado para o meio dia em que nada fazia. No ginásio havia regateado embolso e por apenas meio preço fazia metade dos exercícios, uma parte dos quais eram realizados em observação criteriosa das moças inteiras que vestiam pela metade e deambulavam pelo sítio.
Sempre que ia às compras despendia meio tempo a analisar folhetos de promoções e comprava metade do que fazia falta, outra metade do que nunca usaria. Com o vestuário agia da mesma forma, i.e., comprava roupa conformada a gente com metade da sua idade, metade do seu peso, metade de si, numa tentativa de se manter meio do que se sabia.
A vida amorosa era mais um terreno fértil de metades injustificáveis. Tinha meias relações que se baseavam em sentimentos pela metade, noites de prazer acervadas a meio para que a intimidade não se completasse, mulheres de quem nunca saberia o nome inteiro uma vez que menos de metade chegava para que o seu intuito de meia companhia se cumprisse. Ah! E nem na cama largava as meias. Sim, nu integral, mas sempre com as meias presentes.
Algures pelo meio desta vida vivida pela metade, com meias inferências de tudo o que poderia ter sido completo, teve uma meia epifania e resolveu partir para visitar meio mundo. Afinal de que valia estar já a meio da vida, finasse ela quando fosse, se não vivesse pelo menos metade do que havia vivido?
Reza a história que o nosso senhor das meias, a meio do ano seguinte a largar a sua meia vida, se completou ao morrer de amores por inteiro de uma dama que não se contentou nunca com metades de coisa nenhuma. E viveram felizes para sempre, no seu reino de plenitude vivida a meias!”
Foi à varanda fumar um cigarro, como de costume. Mas desta vez era diferente. Casamento desfeito, malas arrumadas, ida para um apart-hotel. Repara na vista que é desconhecida. Terá de observar cada edifício, cada árvore, até conseguir visualizá-los de olhos fechados para que a paisagem se torne familiar. Como a outra. As roupas trazidas, poucas, menos do que necessita – ternos gravatas camisas sapatos – convivem pacificamente no armário. Uma paz que não sente. Sabe que qualquer dia destes será preciso voltar e buscar mais. Objetos, quase nenhum, salvo alguns papéis dos negócios mais recentes, coisas de uso diário e a cigarreira de prata, herança de um avô distante, que agora acaricia.
Volta a pensar na mulher, nos filhos dormindo a essa hora. Prefere a madrugada, as horas mortas do dia. Sem solicitações familiares. O mundo se suspende por alguns momentos e quase é possível iludir-se de que tudo não passa de um episódio de mau gosto para perturbar sua metódica rotina. Sabe que não. Não desta vez. Agora é sem volta. A discussão com a mulher, que os filhos tardios presenciaram, arrebentou os últimos fios dos frágeis laços que os uniam. Corroídos pelo tédio. Era isso. Toda a sua vida se desenrolara em meio a um grande e inequívoco tédio. Dividia-se entre as roupas de trabalho e as outras, as de viver, que quase não usava.
Agora, frente ao vazio do horizonte, tenta retraçar os momentos bons, mas não consegue. Como os edifícios da nova vizinhança. Eles escorregam na memória, pregam peças, escondem-se por entre os contratos fechados com os seletos clientes. Percebe que o vazio é também seu. Depara-se com o abismo instalado, sorrateiro, cavado sistematicamente a cada novo amanhecer sem sentido.
Um brisa morna, estagnada, balança as folhas das árvores da rua. Imagina sentir um cheiro acre que o deixa vagamente nauseado. Um leve tremor perpassa os dedos que sustentam o cigarro. Ao olhar a sala, percebe nos móveis impessoais as escolhas que nunca foram profundamente suas, mas de alguém que o habita. Quem?
Pela primeira vez, é capaz de nomear algo em si e empalidece. Um filete de suor frio escorre pela têmpora. Sente, e isso é novo, que é preciso fazer alguma coisa. Aquela sensação difusa na boca do estômago de repente grita dentro dele. Uma dor aguda corta-o em diagonal, como o risco do espelho partido pelo frasco de perfume de mulher na noite anterior.
Como que em câmera lenta, apaga o cigarro e encara o telefone. Em algum ponto da cidade, na paisagem compartilhada, um outro telefone toca.