Quatro anos da Minimalista

Há quatro anos, durante a pandemia, surgia a nossa editora Minimalista.

Doze escritores, uma ilustradora, dois designers: a Minimalista é feita de talentos e afetos, numa geografia de criação que une Portugal e Brasil.

Quatro anos depois, a 13ª publicação acaba de ser lançada – Liberdade Minimalista.
Romances | contos | antologias | fotografia | infanto-juvenil.

Obrigada a todas e todos que nos acompanham :))

gostamos de livros | lemos livros | escrevemos livros | publicamos livros

minimalista.editora@gmail.com

Alfabeto Global | Jornal de Leiria | 11.01.24

Neste mês, o texto do alfabeto global é meu, com foto da Anna Monica Rigon. Letra K

26 escritores • 26 fotógrafos • 26 letras • 26 meses

Alfabeto Global: um projeto artístico que liga escritores de língua portuguesa e fotógrafos de outras geografias.
Juntos na construção de um alfabeto comum.

Coordenação: Paulo Kellerman | Jornal de Leiria

Thank you Anna Monica Rigon for your beautiful photo. Obrigada, Paulo Kellerman e Jornal de Leiria, pela beleza da iniciativa e pelo desafio.

**********

Cor, o olhar que nos separa

Em casa. Estou arrumando algo. Parece que peguei alguma coisa do lado de fora e fechei a porta. Alguém coloca um papel pela fresta. Eu pego e não consigo ler. Vejo que a porta não está bem fechada. Alguém quer entrar. Corro e me fecho no ateliê. Ouço que abriram a porta e tento girar a chave mas está difícil. Finalmente, consigo.

Levanto assustada, o suor frio a escorrer pelo corpo. Desagradável. As imagens vívidas da invasão ainda persistem na batida acelerada do coração. Em contato com o chão frio, os pés descalços imediatamente arrefecem, fazendo com que um arrepio suba pela espinha até à nuca. Vou à porta de casa. Trancada, como de costume. Acendo a luz do abajur da entrada, nada. Tudo como havia deixado antes de dormir. A luz amarelada, coada pelo tecido da cúpula, desenha grandes sombras na parede. Não são elas que temo. Com essas, tenho grande intimidade. São as opacidades das pessoas que me deixam inquieta. Entro na cozinha, guiada pelos pés que iluminam o percurso. Vou à janela e afasto a cortina de renda. Noite fechada. O vento sacode gentilmente as folhas. Ainda não é hoje que a tempestade chega. Sirvo um copo de água. Bebo alguns goles e uma tontura súbita me faz apoiar na bancada para não cair. Dirijo-me ao ateliê, acendo a pequena lamparina e, num gesto automático, verifico a fechadura. Intacta, claro. O cavalete está montado como o deixei, próximo à janela, para receber a luz do dia. Do lado de fora, a rua quieta sussurra mensagens de aconchego. De costas para o cavalete, sinto as costas queimarem. As tintas pedem passagem e o esboço se recusa a recebê-las. A tela resiste ao embate e o campo de atrito gerado atinge-me em cheio, como uma labareda. Levo alguns minutos para me recompor; a conexão com o sonho se refaz imediatamente. Sinto medo, o mesmo medo que me despertou há pouco e que parecia ter ficado distante. Que invasão é essa? Tomo coragem e encaro a tela que vem me ocupando nos últimos meses. Traz cores duras, difíceis, lamentosas. Têm vida própria, escurecidas pela pouca iluminação do cômodo. Tento um diálogo, em vão. Com uma pincelada enérgica, exerço uma dominação injusta e corto a tela na horizontal. Vermelho. Solto o pincel, como se queimasse. Deito-me encolhida no canto do sofá. Por fim, adormeço. E sonho novamente.

O vidro estilhaçado. As finas linhas que se espalham como veias do centro ao exterior. O núcleo do grito calado desde sempre e a súbita corrente de ar que é libertada com a explosão. Quais as cores?

Tento pintar o silêncio, o silêncio como definição de liberdade que descobri na primeira vez que voei num planador. Liberdade era isso. Não o voo em si, mas o silêncio que o acompanhava. Tal como a liberdade que senti depois no silêncio da neve que cai, ou no silêncio das pequenas coisas desimportantes. E a sua falta provoca dor física. Tento pintar o silêncio dessa primeira vez. A tela tem seus próprios ruídos e custa a serenar. Continuo a querer reviver o que aconteceu no instante seguinte a essa descoberta. Mas é como um vício: voltamos à droga em busca desse momento primeiro, momento fundador de uma consciência irrecuperável. Tento conseguir o alinhamento perfeito das vontades: a da tela, a do pincel e a da cor para que a explosão do silêncio se dê. Para libertar as memórias que existem apenas no corpo.

Passei semanas sem entrar no ateliê. A confusão das cores dentro de mim não encontrava caminho ao exterior. Quando não entro no ateliê será que ele continua a existir? Parece uma dimensão à parte do meu cotidiano. Um lugar onde deixo partes de mim para depois reencontrá-las. As sombras espichadas do fim da tarde alongam os pensamentos. Dá-lhes uma condição elástica, infinita, que traz a possibilidade de futuro. Levanto-me e vou à janela. A rua está silenciosa nesta quinta-feira. Inesperadamente silenciosa. Reparo numa janela acesa, bem em frente. Havia alguém, sei que sim; ainda consigo ver o rastro do movimento invisível de quem ali estava. Ainda consigo pressentir o olhar que se desvaneceu. Era para mim. E isso me comove de alguma maneira. Toco a vidraça e sinto o espaço que nos separa. Viro-me para a tela cortada e percebo o silêncio vermelho que se espalhou. Compreendo. E assino: K.

**********

[English version]

Colour, the gaze that separates us.

At home. I’m arranging something. It seems like I picked something up from outside and closed the door. Someone slips a paper through the crack. I pick it up but can’t read it. I notice the door isn’t properly closed. Someone wants to come in. I run and lock myself in the studio. I hear the door being opened, and I struggle to turn the key, but it’s difficult. Finally, I manage to do it.

I wake up startled, cold sweat running down my body. Unpleasant. The vivid images of the invasion still linger in the pounding of my heart. In contact with the cold floor, my bare feet immediately chill, sending a shiver up my spine to my neck. I go to the front door. Locked, as usual. I turn on the hallway lamp, but there’s nothing. Everything is as I left it before going to sleep. The yellowish light filtered through the lampshade’s fabric casts large shadows on the wall. It’s not those I fear. I’m quite familiar with them. It’s the opacities of people that make me uneasy. I enter the kitchen, guided by the feet that light up the path. I go to the window and pull back the lace curtain. It’s late night. The wind gently rustles the leaves. The storm won’t be arriving today. I pour a glass of water. I take a few sips, and a sudden dizziness makes me lean on the countertop to avoid falling. I go to the studio, light the small lamp, and automatically check the lock. It’s intact, of course. The easel is set up as I left it, near the window to catch the daylight. Outside, the quiet street whispers messages of comfort. With my back to the easel, I feel a burning sensation. The paints demand passage, and the sketch refuses to receive them. The canvas resists the assault, and the resulting friction hits me like a blaze. It takes me a few minutes to compose myself; the connection to the dream is immediately reestablished. I feel fear, the same fear that woke me up earlier and seemed to have receded. What kind of intrusion is this? I muster the courage to face the canvas that has been occupying me for the past few months. It carries harsh, difficult, mournful colours. They have a life of their own, darkened by the dim lighting of the room. I attempt a dialogue, in vain. With an energetic brushstroke, I exert unfair dominance and cut the canvas horizontally. Red. I release the brush as if it burns. I curl up in the corner of the sofa. Eventually, I fall asleep. And I dream again.

The shattered glass. The thin lines spreading like veins from the center to the outside. The core of the silent scream forever held back and the sudden rush of air released with the explosion. What are the colours?

I try to paint the silence, silence as a definition of freedom that I discovered the first time I flew in a glider. That was freedom. Not the flight itself, but the silence that accompanied it. Just like the freedom I felt later in the silence of the falling snow, or in the silence of small, unimportant things. And its absence causes physical pain. I try to paint the silence of that first time. The canvas has its own noises and is slow to calm down. I still want to relive what happened in the instant following that discovery. But it’s like an addiction: we return to the drug in search of that first moment, the founding moment of an irrecoverable consciousness. I try to achieve the perfect alignment of wills: of the canvas, of the brush, and of the colour so that the explosion of silence occurs. To release the memories that exist only in the body.

I spent weeks without entering the studio. The confusion of colours within me couldn’t find a way out. When I don’t enter the studio, does it continue to exist? It seems like a separate dimension from my daily life. A place where I leave parts of myself to rediscover them later. The elongated shadows of late afternoon stretch my thoughts. They give them an elastic, infinite condition that brings the possibility of a future. I get up and go to the window. The street is unusually silent on this Thursday. Unexpectedly silent. I notice a lit window right across from me. Someone was there, I know it; I can still see the trace of the invisible movement of the person who was there. I can still sense the gaze that faded away. It was for me. And that somehow moves me. I touch the glass and feel the space that separates us. I turn to the cut canvas and realize the red silence that has spread. I understand. And I sign: K.

Augustine e os maus sentimentos

“O que elas não entendiam é que eu precisava de tudo quanto conseguisse reunir para não me estatelar no nada.”

Andreia Azevedo Moreira (Augustine e os maus sentimentos)

quem és?

“se não sais de ti, não chegas a saber quem és.”

José Saramago (O conto da ilha descoonhecida)

histórias

“uma história não vale por si, mas pelo que produz no outro, se desilusão ou encantamento, se muito ou pouco.

é só um jeito de lembrar que o mundo não basta.”

João Anzanello Carrascoza (Conto para uma só voz)

Sombra

os meus olhos estão cegos para o mundo sem ti.

my eyes are blind to the world without you.

Sombra (excerto)

A respiração do tempo [contos]
Minimalista, 2022

Sempre

A vida será sempre sonho.

[Life will always be a dream]

A respiração do tempo (Minimalista, 2022)

Geografias Corporais

A cortina abre… o espetáculo vai começar…

Sou o primeiro a chegar à sala de
espectáculos. Enquanto espero vou
pensando em coisas sem importância.
Pergunto-me se as árvores terão frio à noite ou se os livros que estão nas livrarias ficarão muito nervosos por não saberem quem os levará para casa ou se no falar dos cães haverá um ladrar para dizer a palavra “borboleta” ou se será possível os pássaros darem abraços ou porque nunca se escuta o som das nuvens quando passam pelo céu.
A minha cabeça é o único sítio onde sou realmente livre, e lá posso pensar coisas palermas sem que ninguém me chateie ou ria. Posso pensar em pássaros ou livros, posso pensar na angústia que as canetas sentirão quando se lhes acaba a tinta; ou em cadeiras. Porque enquanto espero outra coisa que me pergunto é se haverá um motivo para me ter sentado na cadeira onde estou, quando todas as outras estavam livres e poderiam ser uma opção. O que terão pensado de mim as cadeiras que não escolhi?

É nisto que estou a pensar quando ela entra e olha a sala. Depois de uma breve hesitação, avança rapidamente entre as cadeiras e senta-se. Poderia escolher qualquer outro lugar mas senta-se mesmo ao meu lado, ignorando todas as outras cadeiras livres.
Fico quieto, à espera. É bom esperar, mesmo quando se sabe que não irá acontecer nada.
Na liberdade da minha cabeça penso: cheira tão bem, que perfume usará?
Mas tudo o que a minha voz é capaz de dizer é:

Boa noite.


GEOGRAFIAS CORPORAIS

Fotografia: Ana Gilbert | Texto: Paulo Kellerman

Alter Edições, 2022.

Design Gráfico: Licínio Florêncio | Coordenação Editorial: Eder Ribeiro

encomendas: geografiascorporais@gmail.com

[ENGLISH VERSION AVAILABLE]

Lançamento do livro GEOGRAFIAS CORPORAIS

É com grande alegria que anuncio a publicação de GEOGRAFIAS CORPORAIS, livro com fotografias minhas e contos inéditos do querido amigo Paulo Kellerman.

Poderia dizer muitas coisas sobre o livro; sobre os 4 anos de trabalho intenso, sobre as idas e vindas até chegar a este momento. Ou sobre o quanto sou grata a cada um dos bailarinos da Pulsar Companhia de Dança e do grupo Te Encontro lá no Cacilda, por me receberem de braços abertos; ao Paulo, por embarcar comigo nesta aventura maravilhosa; ao Licínio Florêncio, ao Éder Ribeiro, à Alter Edições e à Pigma, por nos ajudarem a materializar este sonho.

Porém, o que sinto é que não há palavra capaz de traduzir a emoção que me vai cá dentro ao vê-lo no mundo. [sorrio]

APRESENTAÇÃO em breve!!

Já podem reservar / encomendar pelo email:
[for orders]
geografiascorporais@gmail.com

[ENGLISH VERSION AVAILABLE]


Geografias Corporais é um projeto desenvolvido em 2018 com a Pulsar Companhia de Dança o grupo de pesquisa sobre o movimento Te Encontro lá no Cacilda. Surgiu no âmbito de uma publicação acadêmica sobre arte, estética de resiliência, corpo, deficiência e as múltiplas corporeidades, com o intuito de questionar e desestabilizar a ideia de corpo normal como universal. O projeto tornou-se, ele mesmo, uma produção artística, entrelaçando fotografia e literatura. Ganhou corpo, infiltrou-se na pele, tomou conta de boa parte da vida durante quatro anos. Envolveu pessoas e afetos. Partes dele foram publicadas aqui e ali. E agora, torna-se do mundo. Por inteiro.