Caminha

Caminha na minha direcção, mas não
me vê; agita a mão, mexe os dedos como
se tentasse agarrar o ar. Apesar do seu
comportamento peculiar, a expressão é
pacífica, a postura é tranquila.

Pergunto: Tentas pegar o ar com a mão?

Sorri. Responde: Não, tento agarrar o
amor.

Passa por mim e afasta-se, conduzido
pelo seu sorriso; e assim desapareço da
sua vida. Nem memória serei.

Vejo como se afasta, vejo como
desaparece; e enquanto vejo, pergunto:
será que já não existe amor em mim?

***

She walks in my direction, but does not see me; she agitates her hand, moves her fingers as if trying to grab the air. In spite of her peculiar behaviour, her expression is pacific, her posture is calm.

I ask: Are you trying to catch the air with your hand?

She smiles. And answers me back: No, I am trying to grab love.

She passes by and walks away, lead by her smile; and then I disappear from her life. I will not be even a memory.

I see how she walks away, I see how she disappears; and as I watch her, I ask myself: Is there no longer love in me?

photographs by Ana Gilbert
text by Paulo Kellerman

[in Geografias Corporais, Alter Edições, 2022]

Portable Link

Existência

Não sei bem como começou. Há muito que os dias estão sem contornos. Só sei das horas em que consigo fumar e esquecer de mim. Porque não há nada na minha vida antes da rua de que valha a pena lembrar; porque não sou sequer uma pessoa. Sinto que vou perdendo pedaços pelas ruas por onde vagueio; eles aderem às escadas calçadas bancos onde me encosto. Ficam os buracos na carne. Por eles, vaza a podridão da minha existência. Estou condenado a este presente sem horizonte. Durmo e acordo neste agora, que me engole com a voracidade traiçoeira de um pântano. Debato-me e não saio do lugar. Não há onde possa segurar, alguém que me possa amparar. Apenas este sabor a morte, este cheiro acre que me devolve a presença do mundo, este mundo feito de mijo, vômito e merda. Afundo.

Por vezes, penso que poderia ser um sonho ruim. E que acordaria sobressaltado e ofegante ao som de um despertador qualquer, numa cama feita de branco. Ao meu lado, alguém pousaria a mão sobre a minha pele assustada e diria que está tudo bem. Talvez um dia aconteça, se eu quiser muito. Mas não sei como é querer, desejar algo, ser desejado. Não consigo imaginar, imaginar-me, perceber o que sustenta os meus fragmentos. Sei apenas da exaltação anestesiante que o fumo me traz; da consciência aguda dos movimentos do corpo. E da vontade de foder, não importa com quem. Por instantes, a necessidade insaciável do corpo, o pau intumescido a penetrar em outro corpo, tão sem contornos quanto o meu, basta para apagar dos meus olhos o desejo de ver a beleza que não faz parte de mim. Depois da explosão do gozo sem prazer, é o afastar dos corpos suados, a respiração agitada, a pele sem registros, o vazio. Não sei quando foi a última vez que comi. O ódio aplaca a fome. Revirar as lixeiras exaure. Ou é esta existência informe que cansa; o olhar de nojo das pessoas que passam por mim e viram a cara para que a minha imagem não lhes invada os sonhos. Cansa esta realidade partida, feita de planos sobrepostos não comunicantes, com seus enredos e encenações; películas elásticas que se deformam ao toque e engolem a voz.

Não sei bem como começou. Uma angústia envolta em fogo e dor. Ele estava ali, deitado na praça, e me incomodou desde o primeiro momento em que o vi. Tem algo que não tenho e quero e preciso. Uma altivez, um ar de interesse, uma fagulha de vida. Quis conversar comigo. Insistente. Falava de algo, não me lembro o quê, talvez sobre passados e famílias. Resmunguei qualquer coisa e tentei sair fora; sentei no meu canto feito de papelão e fechei os olhos. Tinha acabado de fumar e senti o ódio crescer no peito e nas mãos. O corpo a se agitar. Pensei que poderia deixar de estar ali, desaparecer, sair caminhando pelas ruas, encontrar um cachorro e despejar nele o meu desespero. Mas a voz, irritante irritante irritante, continuou.

– Para, chega – levanto-me, parto para cima dele, desprevenido e entregue, olhos assustados, meus dedos selvagens agarram os cabelos, já não distingo dedo e fio, começo a golpear a sua cabeça contra o piso da calçada, não sinto nada, não vejo os seus esgares de dor, não escuto os seus murmúrios, recuso a sua humanidade, desprezível como a minha, vejo o sangue da vida entreaberta a escorrer na calçada, ganho força e sei naquele minuto que ele deve morrer, o ritmo das batidas é constante, confunde-se com as pancadas do meu coração, somos um nesta dança frenética e mortal, escuto um estalar de ossos e o prazer de imaginar a face deformada aumenta-me o tamanho, sinto-me um gigante invencível, sou violência e ocupo um espaço neste mundo feito de praça e sangue, sou corpo e existo fora do pântano, sou ritmo e o tempo volta a passar [explosão]

(in A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

Passado a limpo # 01 | por Paulo Kellerman

Era uma vez um professor de filosofia que repete as mesmas ideias turma após turma, como se fosse uma gravação e não estivesse realmente ali, de corpo e alma. A gravação refere-se ao mito de Sísifo. Explica a voz, distanciando-se do corpo, como um certo rei fora punido com o castigo eterno de erguer uma pedra gigante até ao cimo de uma montanha, apenas para depois a ver deslizar montanha abaixo, até ao ponto de partida. Explica a voz, mecânica e sem vida, como o rei repetia aquela tarefa vez após vez, apesar de saber que o desfecho seria sempre o mesmo, e o propósito inútil. Explica a voz, cansada e apática, como aquela conformação do rei em repetir uma tarefa sabendo qual a sua conclusão e irrelevância poderia ser uma metáfora poderosa do destino dos humanos, condenados a repetirem tarefas que não compreendem e não controlam. Explica a voz, desinteressada do que diz, algumas das implicações filosóficas possíveis de especular a partir da postura do rei castigado, e como poderiam ter ressonância em todas as pessoas que as especulassem, incluindo os jovens que se encontram à sua frente.

– E a pedra?

A gravação emperra. A interrupção é inesperada, e a voz vê-se forçada a suspender o discurso automático. Há silêncio na sala de aula.

– Todo o foco está no rei. Mas e a pedra?

A turma agita-se, o professor pede explicações.

-Talvez o protagonista do mito não seja o rei e a sua teimosia absurda. Talvez o que importa realmente seja a pedra, e o seu comportamento. Porque insiste em regressar sempre ao ponto de partida? Não pode ser apenas por força da gravidade ou assim. Isso seria uma explicação científica, e os mitos não são lugares de ciência. Para mim, acho que é por resistência. O rei é teimoso, a pedra é resistente. Ou seja, a pedra tem mais personalidade do que o rei.

É a sétima aula do dia. E a primeira vez que o professor sorri.

Paulo Kellerman

A muted scream

Here I am, where I have always been, in this space that does not belong to me. Or at least, not entirely. I need these moments when I no longer have to exist for the other; when I peel off the makeup of the daily theatre and carefully remove the mask from my body. I face myself without disguise and trace the memories etched in the skin, those that live only in the body and can be unleashed by a single touch. Perhaps I should not touch them, nor even think of them. They open watery spaces that leave me adrift. I avoid speaking of them and shield myself in a shell of silence you do not know. In those moments, my gaze drifts in search of a light that might swallow me whole and spit me out somewhere else, where the muted scream I carry might escape, coarse, through the pores. Yes, there is a scream locked deep inside, a scream of desire. A scream that hides in the crystalline setting, in the perfect arrangement of the room. As if the clarity of the house, the precise focus of my gaze upon the house, could somehow compensate for the disorder that inhabits me. For the pain that pulses incessantly beneath the skin and could be revealed through scanning. I fear that more watchful eyes might notice the slight tremor in the fingers that support my face. Or the involuntary twitch of my eye, the left one. Or the restless shifting of objects, a mechanical act from which I am absent. But you are not attentive. You do not notice the smallnesses that compose my inner landscapes, landscapes that only dare emerge when the world quiets around me and the objects come alive. When I become just another object in our home, perfectly ordered. I, perfectly aligned with the rest. I, perfectly, an object. I could remain like this for hours, motionless, breathing imperceptibly, in the soft undulation of matter. It would be enough not to disturb the peace that invades me. A peace that smells of stagnation, a kind of death that hides in the folds of your gesture. You are sleeping, or perhaps you are simply absent, it is all the same. This time is mine alone, and immersed in this atmosphere, I let the latent desire pour out. I feel it spreading slowly through my body, with a life of its own, seeking out the lesser-frequented corners. It arouses me. It satiates me. I exist in this interval of silence. A silence brimming with life, even if fleeting. I exist in the suspension of light that draws me in. I exist in the seduction that imagination provokes, in the glimmer of reinventing myself. And I tremble. I fear. I still do not know how. The shadows thicken and the light pulls away. Dawn is rising. I return to opacity. Only the consciousness of the skin endures.

Guardanapo

Copiosamente, a mão esquerda que alisa os lugares acantonados.

Copiosamente, reparo.

A sensualidade tem cheiro de filme:

mãos garrafais
queixo nas mãos.
Espelho.
Madeira sólida.
Arrisco histórias.

Cabelos
que chamam dedos que os acariciem.
Um pescoço que pede uma boca
E agora?

Indefinível.
Leve desleixo.
Também a sensualidade
Furou as nuvens.

_____

BLACK OUT POETRY do meu conto Histórias possíveis (A respiração do tempo, Minimalista, 2022), pela bonita Ana Sofia Elias.

Circum-ambulação

Ao se observar ao espelho repara no homem atrás dela.
O homem está atrás dela para que repare nele quando se observar ao espelho.
Observa-se ao espelho apenas para reparar no homem atrás dela.
Somente observando-se ao espelho pode reparar no homem atrás dela.
Repara que pode observar pelo espelho o homem atrás dela.
O homem que está atrás repara que ela se observa ao espelho.
O espelho observa que ela repara no homem que está atrás.
Observa-se ao espelho e há um homem atrás dela que repara.
Só observa o homem que está atrás ao reparar nela no espelho.
Observa pelo espelho o homem que repara que está atrás dela.
Repara que o homem atrás dela se observa ao espelho.
O homem atrás dela repara que é observado pelo espelho?
Espelha-se ao ser observada pelo homem atrás que repara nela.
Atrás dela, o homem. Ao observar-se ao espelho, repara.
O espelho atrás repara que o homem a observa.
O homem e ela só se observam porque atrás o espelho repara.
Sendo ela repara que o homem atrás a observa pelo espelho.
Repara no homem que observa atrás do espelho.
Observadora, repara no espelho atrás do homem.
Reparem como observa pelo espelho o homem atrás dela!
O homem atrás repara no espelho e ela observa.
Atrás do espelho o homem e ela reparam e se observam.
Observam que ela repara no homem atrás dela pelo espelho?
Repara-se quando o homem atrás dela a observa pelo espelho.
Observa o espelho atrás do homem. Ele repara nela.
Quando reparará que o homem atrás dela a observa pelo espelho?
Apenas reparando nela pode observar no espelho o homem que está atrás.
Exclusivamente ao espelho pode reparar que é observada pelo homem atrás dela.
E o espelho, reparará que ela e o homem atrás se observam?
Repara no espelho e observa nele o homem que está atrás dela.
Um espelho. Observa-se. Atrás o homem. Repara.
Ela se observa. Atrás, o espelho e o homem que repara.
Subitamente o homem que está atrás repara que é observado por ela no espelho.

(A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

O canto do pássaro

O canto do pássaro

Era um sonho. E cantavas como pássaro. Cantavas como nunca antes tinha ouvido. Cantavas como no início dos tempos. Cantavas como se a paisagem dos voos se descortinasse diante de ti. Como se eu fosse parte dessa paisagem. Como se eu já não existisse. Ou existisse, mas fosse outra coisa que não eu. Cantavas. O arroxeado das tuas penas ia evaporando pelo hálito do tempo. Tal qual o que se levanta do mar quando estás distraído. E o som do teu canto ecoava, frio, pelo vale afora; ecoava, cristalino, pela alma adentro.

Cantavas, e a tua respiração ofegante se aquietava, ritmada. Cantavas, e o teu coração de pássaro assustado com o novo voo batia acelerado. Ameaçadoramente acelerado. Desacostumado, talvez, aos voos solo, há muito deixados para trás.

Estavas diante do abismo que demarca o limite das terras conhecidas. Um bater de asas e estarias fora do alcance das mãos. Das minhas mãos protetoras, a te aquecerem o corpo ferido. As mãos, capazes de inventar o tempo, cicatrizar os vazios, reverter a sequência dos acontecimentos e escrever de novo a história. Uma nova história. Ou a mesma, apesar de tudo.

Cantavas em resposta a alguma pergunta minha. Ou em antecipação à minha dúvida. Ou para me contar do que se via desde esse teu lugar, na beirada do mundo. Não parecia estranho; ao contrário, era o único som que poderia esperar da tua garganta. Era a única certeza que poderia ter nesses dias de fins e recomeços. A tua voz. E eu, incapaz de decifrá-la e, ao mesmo tempo, tão segura do seu significado. Do que, enfim, eras capaz de me dizer, depois de tantos silêncios entre nós.

Cantavas, e com o som os teus olhos piscavam, lentos, sorridentes, esse jeito de sorrir com os olhos que persistiu até mesmo detrás dos anteparos de que necessitavas para respirar. Uma cumplicidade genuína, nascida não saberia dizer quando. O corpo imóvel, ou quem sabe sem corpo? Apenas existia o canto. Onde estava o teu rosto? Ou era uma cabeça de pássaro? Não consigo me lembrar.

Era um sonho e cantavas. E quando acordei, já sabia tudo o que viria depois. Tudo o que fiz e pensei e imaginei nos nossos encontros esteve atravessado por esse sonho, por esse canto, por esse pássaro em que te tornarias e que já te habitava, à espera. Quando estivemos de mãos dadas, o pássaro cantava dentro de mim; quando massageei a tua pele ressequida, era das suas penas que cuidava. Quando velei o teu sono, noite e dia, e me sobressaltei a cada movimento do teu corpo ou a cada gemido, era pelo medo de ser aquele o momento do seu voo final.

Sabia que estava próximo, mas em algum lugar de mim, achei que se poderia suspender o tempo e adiá-lo. Voltava para casa e o dia retomava sua rotina inalterada. Ainda não, pensava. Contudo, o canto voltava e, com ele, a beleza do momento, a certeza do final, a cercania da hora.

Até ouvir o canto solitário de um gavião pousado no topo do edifício, num momento de pausa ao ar livre. O seu grito agudo, velho conhecido, levou-me de volta ao pássaro do sonho. Não o mesmo, mas ainda assim, pássaro. Agora, existia em vigília. Vinha buscar-te, em breve, muito em breve. Soube.

O dia foi longo. Nossas mãos unidas. O pássaro no peito prester a nascer. Quase conseguia ver o bater lento das asas, a ensaiar movimentos ancestrais. As ondas em convulsão. A aceleração, depois a quase suspensão, como uma bailarina com os pés em ponta. E o recomeço. Uma dança tão bela quanto angustiante. A beleza do fim, que queremos expulsar de nós, sempre a buscar começos, onde tudo é potência e não há rasuras. A beleza do rallentando, do apagamento. Do cessar completo com seu silêncio absoluto.

A vida nos poupa de certas imagens. Há uma lacuna, uma espécie de vazio branco onde tudo desaparece. Não há imagem, não há som, não há trepidação. Não há sequer afetos. Tudo cessa, como se numa dimensão à parte. Apenas o tempo corre, silencioso. Marca o ritmo do meu coração, mas não consigo sentir. Não consigo acreditar que pulsa.

 Súbito, retorno a mim. O pássaro alçou voo e não vi. Não está mais lá. Uma fresta se abriu e ele escapou do meu olhar. A passagem foi selada. Apesar da calmaria, escuto o eco do rufar das asas. O corpo está inerte, mas há um rastro luminoso que diz que o pássaro despediu-se.

Há um dobrar e desdobrar sem fim de folhas amarfanhadas. Essa é a marcação do tempo.

Há a cerimônia onde não estás.

Há o texto do poeta que sai de minha boca, em voz trêmula.

E, então, sinto que o pássaro pousa em algum lugar em mim e faz vibrar as minhas cordas vocais.

As pessoas continuam a escutar o poeta, porém o que verdadeiramente soa é o teu canto firme e cristalino. Uma superposição de sons que nos une.

E o vislumbre do voo.

[texto meu]

*****

The birdsong

It was a dream. And you were singing like a bird. You were singing as I had never heard before. You were singing as if it were the beginning of time. You were singing as if the landscape of flight unfolded before you. As if I were part of that landscape. As if I no longer existed. Or existed, but as something other than myself. You were singing. The purplish hue of your feathers slowly evaporated into the breath of time. Just like the mist that rises from the sea when you’re distracted. And the sound of your song echoed, cold, through the valley beyond; it echoed, crystalline, deep within the soul.

You were singing, and your labored breathing steadied, rhythmic. You were singing, and your bird-heart, startled by this new flight, beat faster. Dangerously faster. Perhaps unaccustomed to solo flights, long abandoned.

You were standing before the abyss marking the edge of the known lands. One flap of your wings, and you would be out of reach. Out of the reach of my protective hands, which once warmed your wounded body. Hands capable of inventing time, mending voids, reversing the sequence of events, and rewriting the story. A new story. Or the same one, despite everything.

You were singing in response to some question of mine. Or in anticipation of my doubt. Or to tell me of what you could see from that place of yours, on the edge of the world. It didn’t seem strange; on the contrary, it was the only sound I could expect from your throat. It was the only certainty I could have in these days of endings and beginnings. Your voice. And I, unable to decipher it and, at the same time, so certain of its meaning. Of what you were finally capable of telling me, after so many silences between us.

You were singing, and with the sound, your eyes blinked slowly, smiling—that way of smiling with your eyes that persisted even behind the barriers you needed to breathe. A genuine complicity, born at a time I could not precise. Your body was still, or perhaps without a body at all? Only the song existed. Where was your face? Or was it a bird’s head? I can’t remember.

It was a dream, and you were singing. And when I woke up, I already knew everything that would follow. Everything I did and thought and imagined in our meetings was imbued with that dream, that song, that bird you would become and that already inhabited you, waiting. When we held hands, the bird sang within me; when I massaged your dry skin, it was its feathers I cared for. When I watched over your sleep, night and day, startled by every movement of your body or every moan, it was out of fear that it might be the moment of its final flight.

I knew it was near, but somewhere within me, I thought time could be suspended and delayed. I returned home, and the day resumed its unchanged routine. Not yet, I thought. And yet, the song returned, and with it, the beauty of the moment, the certainty of the end, the nearness of the hour.

Until I heard the solitary song of a hawk perched atop a building during a brief pause outdoors. Its sharp cry, an old acquaintance, took me back to the bird of the dream. Not the same one, but still a bird. Now, it existed in waking life. It had come to fetch you—soon, very soon. I knew.

The day was long. Our hands joined. The bird in your chest ready to emerge. I could almost see the slow beating of its wings, rehearsing ancient movements. The waves in convulsion. The acceleration, then the near suspension, like a ballerina on pointe. And the beginning again. A dance as beautiful as it was heartbreaking. The beauty of the end, which we try to banish from ourselves, always seeking beginnings, where everything is potential, and there are no scars. The beauty of the rallentando, of fading away. Of the complete cessation with its absolute silence.

Life spares us certain images. There is a gap, a kind of white void where everything disappears. There is no image, no sound, no trembling. Not even emotions. Everything ceases, as if in a separate dimension. Only time flows, silently. It marks the rhythm of my heart, but I cannot feel it. I cannot believe it beats.

Suddenly, I return to myself. The bird has taken flight, and I did not see it. It is no longer there. A crack opened, and it escaped my gaze. The passage has been sealed. Despite the calm, I hear the echo of its wings beating. The body is still, but a luminous trace says the bird has bid farewell.

There is an endless folding and unfolding of crumpled pages. This is how time is marked.

There is the ceremony where you are not.

There is the poet’s text that leaves my mouth, trembling.

And then I feel the bird landing somewhere within me, making my vocal cords vibrate.

The people continue to hear the poet, but what truly resounds is your firm and crystalline song. A superimposition of sounds that unites us.

And the glimpse of flight.

[text by me]

Dose dupla | 2024

Redemoinho

Escovar os dentes após todas as refeições, disseram-me. E, desde muito cedo, eu aprendi esta regra básica de higiene. E continuo a cumpri-la, mesmo quando uma parte da frase está ausente. Refeições. Escovo os dentes com um resto de escova, um resto de pasta, um resto de água, a escorrer, morna, de um copo descartável, que guardo cuidadosamente no meu armário de inventar. Esfrego bem os dentes, as gengivas, a língua. Até sentir ânsia de vômito. Mas não tenho o que vomitar. Na verdade, não sei se essa vontade de vomitar é pelo escovar da língua, pelo estômago vazio, ou por essas pessoas que comem ali, naquele café, e se divertem. Imagino o que conversam, imagino o som dos risos, as pernas que se tocam, discretas, por baixo da mesa, insinuando amanhãs, essa palavra que vou esquecendo o significado aos poucos. Ninguém vai querer me tocar, não desse jeito. Mas talvez eu ainda tenha esperança e, por isso, escove os dentes. Durmo perto desse café por causa do cheiro de pão recém-saído do forno, logo de manhã cedo e da refeição que recebo depois. Cheiro de uma infância feliz, ou quase. Na minha rotina de todos os dias, guardo o meu colchão de papelão num espaço estreito entre dois edifícios, que faço de esconderijo. As brechas me fazem sentir seguro. Como naquela vez. O coração batendo forte, as pernas cansadas de correr, o peso da mão na minha perna. Preciso voltar a escovar os dentes. Até enjoar, porque o estômago está vazio de novo. Olho a água que escorre pela sarjeta, com espuma de pasta e cuspe. E penso nesta imensidão que é a rua. O jeito que a água faz um pequeno redemoinho perto do bueiro me confunde e me faz pensar naquele dia. O revoar no colo de alguém, para depois tombar, num abismo sem fim. A velha dor na perna. A sujeira nos dentes. O estômago vazio. A ânsia. Um riso ao longe e a mulher que passa e me olha. Ela tem um olhar que penetra. Vê as minhas feridas. Encaramo-nos por momentos, a escova suspensa, a baba a escorrer. Os olhos lacrimejam. Ela sabe o que eu sei. O redemoinho dá mais uma volta e tudo é invadido de branco. Ao longe, uma sirene.

(Prêmio Off Flip 2024, categoria Conto)

*****

Afirmação

tenho a pele marcada
da roupa
da idade
de ti

nem sei

tenho o prazer tatuado em mim
como um rastro que deixaste
ainda ontem
ou anteontem

nem sei

tenho o sonho escondido nas dobras
a busca entranhada na alma
a vontade de seguir
sem ti

eu sei

(Prêmio Off Flip 2024, categoria Poesia)

Selo Off Flip

A hora

Acordo sobressaltada de madrugada. Tento identificar alguma dor no meio deste mal-estar difuso, mas o que sinto é solidão. Estive sempre sozinha. E hoje não poderia ser diferente. A barriga de nove meses é acanhada, como que a desculpar-se por existir. E não deveria mesmo existir. O que aconteceu naquele momento era para ser esquecido. Mas não foi. Está aqui. Inteiro. Pulsante.

Algo se mexe por dentro: ossos se afastam, a estrutura se modifica, lenta. Pequeno terremoto interno. Queres nascer. Meu corpo quer te expulsar. A ti, que estiveste comigo durante estas trinta e oito bem contadas semanas. A cama está molhada e fria. As comportas se abriram e a água encharcou os lençóis. Respiro com dificuldade; os dedos tateiam a pele como olhos.

Levanto um pouco atordoada, sei de memória o que é preciso ser feito: mala, táxi, médico. Os gestos trêmulos percorrem a casa guiados apenas pela luz que entra da rua. Os pés descalços caminham, incertos, e sentem o incômodo áspero do piso.

Tenho medo. Acho que tenho muito medo. 

Visto o casaco que foi da mãe. Lembro dela, evoco o seu cheiro e tento imaginar o que sentiu quando eu estava para nascer. Embrulho-me na lã gasta, tantas vezes lavada, e quero que ela me agasalhe como o meu ventre faz contigo. A mãe, mistura de cuidado e distância. Busco o retrato na gaveta. Desejo súbito de tocá-lo neste momento. Estamos as duas. Ela sorri comigo nos braços. Eu sorrio ao olhar a foto. Esforço-me por apreender o que é essencial; não sei se consigo. Retardo a saída, procuro adiar o inevitável.

Dentro do elevador, o espelho observa-me, insensível.

Quando chega o carro, vejo nos olhos do taxista as dúvidas sobre aceitar-me como passageira. É apenas um lampejo e, afinal, permite que entre no carro. Diminui o volume do rádio que despeja notícias da madrugada numa voz pastosa. O trajeto é feito de lembranças dispersas que deslizam pelos fios da iluminação urbana. Reparo nas janelas acesas e imagino vidas. Penso nos bebês que nascem neste exato momento; nos casais que trepam, ou discutem. Nas crianças que acordam de pesadelos e chamam pela mãe. Nas mulheres que sonham em voltar enquanto observam a vista. Voltar para onde?

O desconforto aumenta. A realidade me invade em contrações.

O táxi para diante da emergência do hospital. Percebo que o motorista quer me despachar logo, não vá ter que fazer um parto no meio da madrugada. E, ainda por cima, sujar o banco todo de sangue. Desço com dificuldade e me encaminho para a entrada. Sou recebida ainda na rampa e colocada numa cadeira de rodas. O edifício me engole e eu mal consigo engolir o choro. 

Peregrino pelas salas, vou ouvindo coisas a meu respeito que não identifico bem. Sou tocada, perfurada, verificada, medida. Anônima em meio aos números. Distante de ser pessoa. Aperto as coxas involuntariamente. Por vergonha ou porque, agora descubro, não te quero perder. Penso que ainda é cedo; quero contar as histórias de que sou feita. Desenhar as fronteiras da tua existência. Saber-te na imagem refletida, ainda que eu não te possa ver; perceber a presença na ausência.

Ainda não sei como é ser mãe.

Sou despida das roupas e das palavras que balbucio ofegante sem ser ouvida. Faz frio e o lençol branco e brando que agora me cobre é como a luz infinita que existe na sombra. Os olhos são puro espanto. Mas ninguém repara. Sou um corpo desordenado, a reproduzir espasmos imemoriais que seguem um roteiro que me é desconhecido. O coração acelera com o esforço. O suor escorre. A dor que sinto existe para além do anteparo de pano azul que parece separar a parte instintiva da pensante. Penso o meu corpo ou ele me pensa a mim?

– Respira, força, falta pouco! – ouço.

Algo se rasga dentro de mim e o meu grito não tem som. É um grito feito de certeza e dor. A dor que é nada se comparada ao medo. Acordo para um outro estado de percepção. Sinto as ínfimas sensações. Frementes. O espaço ondula. Mãos trabalham no meu corpo e no teu. As minhas apertam com força as bordas da mesa. Os movimentos são intensos e eu perco o controle. 

Nasces. Como um poema. Lápis em atrito, a despejar palavras desordenadas no papel. Arranhaduras de pele com pele, em abalos convulsivos. A sensação viscosa de morte iminente. A explosão que te leva a uma outra vida num mundo aterrador. Fio que se espalha e nos mantém unidas, mas que carrega o prenúncio da separação. Escrever é saber cortar. Nascer é aprender a ser só. Separada de mim. Apesar de mim. Comigo. Sorrio. Como se fosse a primeira vez. É a primeira vez. Para ti.

Leio-te em voz alta. Reconheço-te. Poema escorreito que desembocou na margem, enfim

(A hora, in A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

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Num lugar qualquer

Sobe as escadas, lentamente, num andar que seduz. Olha em direção ao café antes de seguir para a sala de exposição. A saia curta, as pernas bem torneadas, os seios demarcados na blusa. A bolsa a tiracolo, esquecida. Tem a idade da juventude, em que os dias fluem sem pressa. Observa cada quadro com meticulosidade. Concentrada que está, não percebe que é observada. Por mim. E por ti. Talvez tenha reparado em nós, talvez em ti, apenas. Mas comporta-se como que alheia a tudo e todos. E isso é ainda mais sedutor. 

Reparo que tens os olhos fixos nela. Acompanhas cada passo, cada movimento daquele corpo. Os olhos brilham, cedes à atração. Do corpo ou da história imaginada? Não sei e isso me excita.

Sei que começas a construir-lhe uma história. Idade, ocupação, relações. Desenhas um corpo com palavras. Inventas encontros e diálogos. Ensaias situações. E isso te envaidece. 

Tem sido assim desde sempre. Nossa história é longa, feita de sedução e cumplicidade. E de novidade. Precisas de novidades para permanecermos juntos. Nada é suficiente para ti; não sou suficiente,  e há muito deixei de tentar encontrar razões para isso.  Examinas a moça e o teu olhar me agride. O teu desejo me agride; o corpo dela me agride; e a sua juventude. Agrides-me. E me excito ao imaginar-te com ela, com todas como ela. Sempre jovens e interessantes e de olhares sonhadores. O que fiz aos meus sonhos? 

Agora, ela vem em nossa direção. Parece não nos ver. Ou finge não ver. Senta-se na mesa ao lado e pede um chá. Olhas discretamente, o ângulo não favorece. Sinto a conexão que se estabelece entre os três. Sim, algo nela se insinua: o cruzar de pernas, a lentidão do bule a entornar o chá, a echarpe que é retirada, expondo o pescoço esguio.

Sinto um calor repentino, a sala se tornou sufocante. O meu rosto arde. Ela está ao teu alcance, basta que pronuncies uma palavra. Imagino a aproximação lenta, a sedução quase explícita, a conversa que terias com ela. Reparo que estou a viver tudo isso dentro de mim. Tu e ela são apenas peças do meu jogo, que levo adiante como forma de me ferir. Qual a diferença entre prazer e dor? Volto à cena e constato que já não te preocupas em disfarçar o interesse. Há agora um esquadrinhar aberto, à espera de reciprocidade. Ignoras-me. Sou feita de matéria invisível, ainda que em carne-viva.

Ela termina o chá; olha-nos. Sim, encara os dois. O que pensará? Ter-se-á interessado por ti? Por mim? Contudo, nada mais acontece. Ela se levanta, sem pressa, dá meia-volta e desaparece das nossas vidas. 

Esta noite, quando estivermos a foder, pensarás nela. Eu também.

[in A respiração do tempo, Minimalista, 2022]

Como da primeira vez

“Pergunta-se se ela conseguirá vislumbrar outro mundo para além da rachadura; para além do desencanto, para além da secura.”

[excerto do meu conto Como da primeira vez, na antologia LIBERDADE MINIMALISTA, 2024]

Minimalista

Liberdade Minimalista

A Liberdade amanheceu no Brasil :))
Acaba de chegar a nova antologia da Minimalista: LIBERDADE MINIMALISTA

17 autores, 17 olhares sobre a liberdade.
(conto, poesia, prosa poética, poesia visual)

Já podem encomendar:
minimalista.editora@gmail.com ou por aqui.

[distribuição local]

Design gráfico: Licínio Florêncio
Ilustrações: Maraia
Logotipo: Sónia Silva