Lar | Fotografar palavras # 5403

Na publicação # 5403 do FOTOGRAFAR PALAVRAS, a companhia é do belo poema do ~nassr

Lar

Reconheci-te no instante em que te encontrei —
o teu sorriso, rebeldia talhada em alegria contida,
as conversas que murmuravas às folhas de chá,
como se o futuro se escondesse no perfume do vapor.
Conhecia a tua alma muito antes
de a tua pele dizer o primeiro olá.
Não foi fogo, nem carne, nem vertigem,
foi apenas o ver através:
as tuas inseguranças — disfarçadas de armadura,
o teu perfume — um mapa sem destino.

Ergui um lar dentro de ti.
Mas o chão tremia,
o vidro partiu-se sob o nosso peso,
e o lar desfez-se — um fantasma de abrigo,
deixando-me órfão de um lugar onde nunca vivi.

Procurei-te noutros rostos,
derramei-me em corações abertos,
na esperança de que guardassem o eco da saudade.
Mas cada casa onde entrei
era um quarto sem ar,
um corpo sem morada.

Ser refugiado ensinou-me
que os lares não se talham em pedra —
a pedra cede sob o peso do exílio.
Um ano, um lugar,
e recomeça-se.
Mas a alma cansa-se
de paredes que não escutam.

Uma casa pode conter o corpo,
mas é o lar que contém o coração.
E se os lares que ergui nos outros
nunca pudessem suportar o peso da minha alma?
E se todo o coração precisar de repouso,
mas nem todo o lugar o puder acolher?
Talvez o lar não seja um destino.
Talvez seja o instante do reconhecimento,
o breve pulsar onde duas almas murmuram:
“Também eu te procurava.”

***

Home

I recognised you when I met you,
your grin—rebellion carved in quiet joy,
your whispered debates with tea leaves
as if they held your future in their scent.
I knew your soul, long before
your skin introduced itself.
No fire of attraction, no storm of flesh,
but I saw through the layers:
your insecurities—dressed as armor,
your perfume—a map to nowhere.

I built a home within you.
The foundation trembled,
glass fractured beneath our weight,
and suddenly, the home dissolved—
a phantom of safety,
leaving me homesick for a place
I’ve never been.

I searched for you in others,
emptied myself into open hearts,
hoping they’d catch the echo of longing,
but every house I entered
was a room empty of air.

Being a refugee taught me
homes aren’t carved in stone;
stone crumbles under the weight of exile.
One year, one place,
then you build again,
but the soul grows weary
of walls that don’t listen.

A house may hold the body,
but a home holds the heart.
What if the homes I’ve built in others
could not hold my soul’s weight?
What if every heart needs a place to rest,
but not every place can carry the heart?
Perhaps home isn’t a destination.
Perhaps it’s the pulse of recognition,
perhaps it’s the moment two souls whisper,
“I’ve been looking for you, too.”

Texto | Text: ~nassr
Fotografia | Photography: Ana Gilbert

FOTOGRAFAR PALAVRAS, projeto criado pelo Paulo Kellerman em 2016. Lugar para ler e ver devagar. Publicações diárias.

Apenas

O tempo é apenas uma sequência de acasos. A eternidade é apenas uma sequência de acasos. A existência é apenas uma sequência de acasos. Tu és apenas uma sequência de acasos.

***

Time is just a sequence of coincidences. Eternity is just a sequence of coincidences. Existence is just a sequence of coincidences. You are just a sequence of coincidences.

Text: Paulo Kellerman

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Vida

(foto do painel no Moinho do Papel, Leiria, Portugal)

Processo criativo, trabalho conjunto, arte… precisamos disso, sempre…

*****

Pois sou | crônica de Paulo Kellerman 

A minha filha termina por estes dias o segundo ano de um curso de artes. Quando andava no secundário, ouviu de colegas que frequentavam outras áreas de estudo comentários sobre a irrelevância dos cursos de artes. Respondia algo do género: «Gostava de saber como aguentarias a tua vida sem música e cinema e pintura e literatura e jogos e fotografia e dança e todas as outras artes.» Costumam existir duas posições antagónicas: de um lado, um certo endeusamento dos criadores, como se fossem seres superiores a quem tudo é devido; do outro, um certo desprezo por quem cria, como se a arte nascesse do ar, dispensando a acção e o esforço. São os defensores desta última postura que vão perpetuando a velha ideia de que os criadores são pouco mais do que parasitas da sociedade; afinal, se neste momento parar de ser criada arte, no YouTube têm material suficiente para se entreterem durante uma vida ou duas. Que este pensamento subsista, é triste. Mas existe forma de o combater? Deverá haver por aí uma infinidade de propostas; portanto, não virá mal ao mundo se juntar a esse pacote mais algumas sugestões; simples e utópicas. Primeiro passo: perceber claramente que existe uma diferença entre cultura e entretenimento; não se chega a lado nenhum sem antes aceitar que uma coisa é estimular o pensamento, a acção, a curiosidade, as emoções, o sonho ou a liberdade e outra coisa é distrair ou divertir. Segundo passo: apelar àqueles criadores que se encontram em pedestais que desçam até cá abaixo e percebam que se os seus egos conversarem com os egos dos outros talvez possam nascer ideias bonitas. Terceiro passo: os defensores da teoria do artista-parasita compreenderem que o trabalho artístico é isso mesmo, trabalho; ou seja, merecedor de respeito e remuneração justa. Quarto passo: aproximar criadores e públicos numa relação de pares; nem o criador é um deus alvo de veneração, nem o público é uma entidade anónima e passiva; são pessoas. Como fazer isso? Por exemplo, criando residências artísticas de longa duração em que criadores e público-tornado-criador participam na concepção de projectos concretos (peças de teatro, exposições, livros, álbuns de música); em que todos são pagos e portanto igualmente responsabilizados e valorizados; em que todos contribuem com as suas experiências e conhecimentos; em que os trabalhos criados são públicos e sujeitos a opinião. E porquê? Porque fazer parte do processo criativo aumenta o espírito crítico; porque quem tem coragem de participar activamente deixa de veicular sentenças vazias, pois passa a conhecer na pele os desafios, as dores e os prazeres da criação e produção de algo; porque quem faz e não se limita a falar conquista liberdade e respeito. Mas quem paga? Voltamos ao início: aqueles que acham que os recursos públicos apenas devem ser canalizados para pontes e hospitais e bancos por acaso aguentariam a vida sem música e cinema e pintura e literatura e jogos e fotografia e dança e todas as outras artes? Utópico? Pois sou.

(Jornal de Leiria)