Observo-te

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“Observo-te à distância. À distância insegura de um toque, de um gesto, à distância insegura de uma inspiração-expiração-inspiração, à distância insegura do olhar que é também carícia.

Observo-te, e penso que sequer suspeitas o que sinto. Talvez imagines que estou aqui sem me envolver, alheia a ti, sensação apenas. Talvez não. Observo-te: contornos, textura, movimento. Observo-te na solidão da tua presença, na tristeza do encontro, na possibilidade de prazer (ou será dor?).

Tocas-me. Com a ponta do cigarro acesa. É parte do teu prazer. Estremeço. Já não sinto dor. Já não sei a diferença entre dor e prazer. Tento concentrar-me em cada pedaço de mim que ganha vida própria ao teu toque. Mas o pensamento é como um compartimento estanque, isolado das sensações, a seguir seus próprios caminhos. É preciso que seja assim. E continuo a pensar. Já não sei a diferença entre dor e prazer. Os dois parecem parte da mesma coisa. Tento convencer-me de que é assim, de que esta é uma forma de amor, a tua forma de amar. Talvez desejes que seja imune à tua sedução, que apenas ceda aos meus próprios desejos (quais?), aproveite o momento, não tenha anseios. Talvez. Imagino que não sou o que queres de mim. Seria isso? Hesito por um instante. Observo-me. Estou à beira da entrega. Acho que o faço por prazer (ou será medo?). Não sabes da minha insegurança, sabes? Se soubesses, o que farias? Agredirias mais? Machucarias com mais requinte? Irias embora, deixando-me em abandono? Talvez não. Serei eu a desconhecer-te? A desconhecer-me? Queria odiar-te e tornar-me inteira no ódio. Mas não tenho forças. Meus fragmentos estão espalhados.

Observo-te à distância, insegura do que ser depois, depois, quando me dissolver em ti e nada mais fizer sentido. Não agora.”

Fotografar palavras

Projeto | Paulo Kellerman

Texto e foto | Ana Gilbert

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“We all live on the same surface, the same skin. If others are unfathomable, it is because it takes an infinite number of folds to really reach them.”

Texto | Laura U. Marks  (Touch: sensuous theory and multisensory media)

 

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Ando em busca da minha humanidade, tão diferente de tudo ou será tão igual?

 

Estado onírico

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Numa cidade medieval, cercada por muros de pedra, circulo perdida em labirinto. Sei que não estou só; ele está comigo, em sugerida presença apenas.
Ando, retrocedo, perco-me no temor de ser vista. A morte espreita com seu perigo frio.
Um homem cego esfrega os peixes para tirar-lhes as escamas. O homem cego, de olhos brancos vazados, estampa um sorriso patético, congelado, alheio a tudo, inconsciente do que faz e de si mesmo.
Um gato se aproxima, atraído pelo odor dos peixes. O homem cego toma o gato como se peixe fosse e esfrega o gato/peixe para tirar-lhe as escamas/pele. O gato morre em carne viva e o homem cego sorri em sua máscara grotesca.
Tenho nojo.
De repente, acho-me à porta da cidadela; um caminho ondeia colina abaixo. O ar fresco é como um golpe que me desperta do congelamento asqueroso do homem cego.
Nessa hora, percebo que escolhi não ser como ele, feliz em seu automatismo insensível.
Corro pelo caminho tortuoso que colina abaixo serpenteia.
Sei que ele vai comigo. Juntos, percorreremos distâncias até encontrar o lugar.
Texto e foto: Ana Gilbert