quando desces da montanha

quando desces da montanha
trazes contigo o rumor dos sobreiros
e o hálito agreste da urze colado à pele.
há sempre um frio que te antecede,
como se a geada te tivesse escolhido
para corpo e manto.

eu, que me perco nas planícies,
reconheço em ti a altura do que não alcanço.
não desces apenas
trazes um mundo em suspensão,
um tremor antigo que me percorre os ossos
como um bicho indizível.

o sol recua para te deixar passar.
os charcos, esses, guardam o reflexo do teu riso
como quem aprende a arte da claridade.
e eu, que há muito deixei de esperar,
espero-te.
porque quando desces da montanha
sinto o meu corpo regressar ao seu princípio:
um sopro húmido, uma lembrança de lume,
o desejo de me perder outra vez
num inverno, que apesar de denso
deve acolher a claridade dos cristais.

Poema | Rui Coutinho