
Your beauty is untamed and tall.
Ana Sofia Elias (Uca, 2024)
[Uca é viagem lisérgica]

Na penumbra da tarde,
o mundo morto,
a meu passo, despertava.
Não era o amor
que eu procurava.
Buscava o amar.
Na casa em ruínas,
te despias
para que me deixasse cegar.
Voz transpirada,
suplicavas que te chamasse no escuro.
Em ti, porém,
eu amava
quem não tem nome.
Na casa arruinada
te amei e te perdi
como a ave que voa
apenas para voltar a ter corpo.
Na penumbra da tarde,
tu me ensinaste a nascer.
Na noturna claridade
me esqueci
que nunca havias nascido.
Mia Couto [poemas escolhidos]

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.
Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.
Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.
Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.
Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz,
se vai despindo em ti.
O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.
Mia Couto [poemas escolhidos]

MANOEL DE BARROS – o poeta, a imagem, a despalavra
No dia 05 AGO | Sábado, das 16h às 18:30h (Brasil), vamos conversar sobre a poesia de Manoel de Barros, poeta do limiar da palavra, das miudezas e das lonjuras.
O evento será via ZOOM e contará com a presença das integrantes do IJRJ: Sigrid Haikel, Aurea Torres, Maria Lúcia Lorêdo Jorge, Isabela Fernandes, Ana Gilbert e Maria de Fátima C. Coelho.
Valor simbólico de R$30,00 que será revertido para a Casa das Palmeiras – Nise da Silveira
Informações e inscrições: link na BIO
OU no site do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro

“O vento está no meu mar
Foste tu
Dragão nu
Com esses gritos
E esses cabelos
Já estás a vir”
Palavras: José Carlos Ferreira


“mas cada sílaba que nascia
trazia consigo uma maneira diferente e inútil
de te esquecer”
Alice Vieira (Os armários da noite)

“estou a plantar florinhas nas cavidades
dos olhos para não ver mais para ver jardins”
Valter Hugo Mãe (Publicação da mortalidade)

“e as palavras que ninguém quis
silenciaram a festa do meu corpo”
(Alice Vieira)



“A luz da janela
sobe pelas folhas verdes
ao topo das árvores.”
Yosa Buson (A borboleta e o sino)
Tradução: Sérgio Medeiros

“Invento para me conhecer.”
Manoel de Barros (Menino no mato)

“Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo.”
Palavras | Manuel António Pina (O coração pronto para o roubo)

“Real, real porque me abandonaste?
E, no entanto, às vezes bem preciso
de entregar nas tuas mãos o meu espírito
e que, por um momento, baste
que seja feita a tua vontade
para tudo de novo ter sentido,
não digo a vida, mas ao menos o vivido,
nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade.
Oh, juntar os pedaços de todos os livros
e desimaginar o mundo, descriá-lo,
amarrado ao mastro mais altivo
do passado! Mas onde encontrar um passado?”
Palavras | Manuel António Pina (O coração pronto para o roubo)

é difícil concordo conjugar este
verbo insensato e tardio que
de repente se atravessou no meu caminho
Palavras | Alice Vieira (Os armários da noite)

“Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão.
Agora uma pequena razão chegaria,
um ponto fixo, uma esperança, uma medida.”
Palavras | Manuel António Pina

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“avisto a extensão de negro em que depositas
o teu coração em forma de palavras
e perco as minhas pupilas para o mar:
troco as barcas por barcos
visto os pássaros de asas gigantes
agito as águas
empresto sopros ao vento…
às vezes o ondeado das dobras da seda
negro em filamentos entremeados de luz
não deixa ver a inclinação do eixo que diz das tuas estrelas”
Palavras | Isabel Pires (a permanência da memória dos dias de sal)

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“Talvez eu seja
O sonho de mim mesma.
Criatura-ninguém
Espelhismo de outra
Tão em sigilo e extrema
Tão sem medida
Densa e clandestina
Que a bem da vida
A carne se fez sombra.

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Talvez eu seja tu mesmo
Tua soberba e afronta.
E o retrato
De muitas inalcançáveis
Coisas mortas.

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Talvez não seja.
E ínfima, tangente
Aspire indefinida
Um infinito de sonhos
E de vidas.”
Palavras | Hilda Hilst (Cantares de perda e predileção, XLVI)
(obrigada, R. R.)