
A luz entra pela fresta da manhã e ilumina os cantos escuros da casa, assim como os teus olhos acordam os meus sentidos na penumbra do corpo.

A luz entra pela fresta da manhã e ilumina os cantos escuros da casa, assim como os teus olhos acordam os meus sentidos na penumbra do corpo.

“Carrego uma lâmina sob a pele. Fria, cortante, protetora. Afasta-te de mim; afasta-me de ti, de todos, de mim. Sangro. E (quase) não sinto.”
Projeto | Paulo Kellerman
Texto | Ana Gilbert
Foto| Frankie Boy



Foi à varanda fumar um cigarro, como de costume. Mas desta vez era diferente. Casamento desfeito, malas arrumadas, ida para um apart-hotel. Repara na vista da varanda que é desconhecida. Terá de observar cada edifício, cada árvore, até conseguir visualizá-los de olhos fechados, para que a paisagem se torne familiar, como a outra.
As roupas trazidas, poucas, menos do que necessita -ternos bermuda camisas sapatos- convivem pacificamente no armário. Uma paz que não sente. Sabe que qualquer dia destes será preciso voltar e buscar mais. Objetos, quase nenhum, salvo alguns papéis dos negócios mais recentes, coisas de uso diário e a cigarreira de prata, herança de um avô distante, que agora acaricia.
Volta a pensar na mulher, nos filhos dormindo a essa hora. Prefere a madrugada, a hora morta do dia. Sem solicitações familiares. O mundo se suspende por alguns momentos e quase é possível iludir-se de que tudo não passa de um episódio de mau gosto para perturbar sua metódica rotina. Mas sabe que não. Não desta vez. Agora é sem volta. A discussão com a mulher, que os filhos tardios presenciaram, arrebentou os últimos fios dos frágeis laços que os uniam. Corroídos pelo tédio. Era isso. Toda a sua vida se desenrolara em meio a um grande e inequívoco tédio. Dividia-se entre as roupas de trabalho e as outras, as de viver, que quase não usava.
Agora, frente ao vazio do horizonte, tenta retraçar os momentos bons, mas não consegue. Como os edifícios da nova vizinhança. Eles escorregam na memória, pregam peças, escondem-se por entre os contratos fechados com os seletos clientes. Percebe que o vazio é também seu. Depara-se com o abismo instalado, sorrateiro, cavado sistematicamente a cada novo amanhecer sem sentido.
Uma brisa morna, estagnada, balança as folhas das árvores da rua. Imagina sentir um cheiro acre, que o deixa vagamente nauseado. Um leve tremor perpassa os dedos que sustentam o cigarro. Ao olhar a sala, percebe nos móveis impessoais as escolhas que nunca foram profundamente suas, mas de alguém que o habita. Quem?
Pela primeira vez é capaz de nomear algo em si e empalidece. Um filete de suor frio escorre pela têmpora. Sente, e isso é novo, que é preciso fazer alguma coisa. Aquela sensação difusa na boca do estômago de repente grita dentro dele. Uma dor aguda corta-o em diagonal, como o risco do espelho partido pelo frasco de perfume de mulher na noite anterior.
Como que em câmera lenta, apaga o cigarro e encara o telefone. Em algum ponto da cidade, na paisagem compartilhada, um outro telefone toca.
…
Trilha sonora | The final cut (Pink Floyd)
…
Texto e foto | Ana Gilbert

“Descubro que ser desadaptada é a minha fonte.”
Palavras | Clarice Lispector (A descoberta do mundo)

Projeto | Paulo Kellerman
Texto | Ana Gilbert
Foto | Chico Vilaça

“Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?
Palavras | Hilda Hilst (De amor tenho vivido)
Ando muito por aqui…
O blog Fotografar palavras, criado há dois anos e meio pelo escritor português Paulo Kellerman, propõe como exercício criativo transformar palavras em imagens. Escritores selecionam trechos de textos seus e os fotógrafos encontram uma (ou mais de uma) imagem nas palavras. O que se vê por lá é uma declaração de amor às palavras e às imagens; à literatura, à fotografia e à arte em geral, numa colaboração instigante e harmoniosa entre talentos e estilos. Afeta, emociona, faz pensar… realiza-se como arte.
O programa Fotobox, da televisão portuguesa RTP3, dedicou a edição de número 113 ao projeto. Pode ser visto aqui.

“Talvez, afinal, o propósito da vida seja a conservação dos sonhos, sendo os homens meros instrumentos da sua sobrevivência, simples receptáculos. Ou talvez sejam os sonhos, em abstracto, aquilo a que se chama deus.”
Palavras | Paulo Kellerman (As sirenes, Os mundos separados que partilhamos)

“É nos abraços de luz que a coragem comanda os membros que se submetem a ir no anseio de ficar.”
Projeto: Paulo Kellerman
Texto: Catarina Vale
| Fotos: Ana Gilbert | Textos: Paulo Kellerman
| Dança: Inesa Markava
Projeto em andamento com o grupo de pesquisa sobre movimento Te encontro lá no Cacilda / Pulsar Cia. de Dança | Teatro Cacilda Becker, Rio de Janeiro, Brasil.

Saber-se no corpo, ser o corpo, ser no corpo… o próprio e o do outro. Corpos humanos como materialidades diversas e criativas que se atualizam no dançar… corpos dançantes que interagem e se afetam mutuamente.
…..
“Estende-me a mão. E diz: Não a agarres. Diz: Sente-a, apenas.
Aproximo a minha mão. As duas palmas tocam-se, e assim ficam: juntas.
Diz: Agarrar significa prender, não achas? Para sentir o outro basta tocar-lhe. Talvez tocar seja uma forma de agarrar com liberdade.
E sorri. Também sorrio. Enquanto as nossas mãos se tocam. Livres e sorridentes.”
…..


No caminho te ilumino.”
Projeto | Paulo Kellerman
Texto | Letícia A.

“Conspiração
Sei-te igual.
Sei-te estranho.
Sei-te de cor.
Sei-te o sal,
O odor
e o intento.
Sei-te aqui.
Sei-te aí.
Sei-te onde for.
Sei-te como ser.
Sei-te o nome.
Sei-te o rosto.
Sei-te a boca.
Sei-te o corpo.
Sei-te o sexo.
E o desejo.
E não sei
nada de ti.”

“Vou despir-te de tudo o que és, deixar-te nua de ser. Vou despir-te até seres apenas corpo.”
Palavras | Miguel Clemente

Finges não perceber o que me acontece.

“O que fazer se a morte é um eterno estado de consciência, restrito a observar em silêncio essa escuridão?”
Palavras | Haruki Murakami (Sono)
…
da palavra à imagem, da imagem à palavra
…
Perdida
no vazio das coisas
no azul dos ladrilhos
só
em meio ao ruído
abafado da música
desconexo das pessoas.
Palavras | Ana Gilbert