

se alguma vez me vires em sonhos
sacode-me a terra ao coração
Valter Hugo Mãe (Publicação da mortalidade)


se alguma vez me vires em sonhos
sacode-me a terra ao coração
Valter Hugo Mãe (Publicação da mortalidade)





“As pessoas, e as coisas, não são de verdade?”
João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas)




Magazine for Contemporary Photography


“Ao sinal invisível, os homens começam a disparar. Descarregam as armas, como uma ejaculação coletiva, fruto de um gozo inominável. Uma nuvem de pássaros tinge o azul do céu com gritos vermelhos. As pessoas vão caindo, flor a flor.”
[excerto do conto Convulsão, em A respiração do tempo]
Uma edição Minimalista


Parcerias e afetos. Cumplicidades e sonhos.
2022

…ou dos encontros bonitos…

“blinded by the light that’s inside” | (Untouchable, Part 2, Anathema)
Contos ao pôr do sol com Pedro Oliveira | O Nariz Teatro



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reverberação
Ao escutar o som amplificado do violino, a primeira reação é de contrariedade: a melancolia do instrumento é corrompida pelo amplificador barato. Irritada, volto ao café, quero aproveitar os últimos minutos antes de começar o dia de trabalho; porém, é mais forte do que eu e me pego a imaginar que o som já terá chegado à sala (reverbera dentro de mim) e que me distrairá das histórias, das pessoas (não quero que se aninhe em algum canto escondido). Um vidro e uma parede me separam (protegem?) da cena. Folheio o livro sem foco, percorro as telas do celular sem interesse, a passar por caricaturas que são vidas, a escoar a minha própria vida. Sinto incômodo. Olho de relance e só agora noto a presença da partitura, o pé a marcar o compasso do texto. A vida entra em modo pause. Espicho o pescoço. Pela primeira vez busco ver o músico e descubro que são dois rapazes a tocar; a mala aberta no piso coberta com o pano cor de vida para receber os trocados que nem sei se dão para alguma coisa.
Tento ler seus olhos: estão lacrados, ou talvez, apenas concentrados naquelas pequenas marcas negras sobre o fundo branco. Partitura. Partido. Partes. Imagino-lhes a vida: estudantes de música, quase com certeza. Devem ser de outra cidade e vieram cursar a faculdade; alugam um quarto numa casa antiga com outros estudantes iguais a eles. Ou quase. O arco desliza, em câmera lenta; vez por outra, sons de buzinas estilhaçam o ar, impacientes. Uma criança de uns três anos se aproxima com uma nota. Quer entregá-la na mão de um dos músicos (a relação se faz de mãos que pedem e nem sempre recebem? que doam e nem sempre são acolhidas?); ainda não percebe as diagonais, as perpendiculares, os trajetos dos desencontros. A mãe indica a mala e ela deposita feliz aquilo que ainda não entende. O livro esquecido, o celular na bolsa, presto atenção à música, um Vivaldi mal executado, um inverno neste verão escaldante e empoeirado, mas que de súbito toca alguma corda em mim e provoca uma ternura por esses seres anônimos, perdidos numa cidade abandonada, a tentar espalhar alguns sorrisos distorcidos pela tecnologia, a tentar ganhar algum dinheiro distorcido pela caridade. E eu olho, penso se tenho dinheiro trocado (deveria dar alguma coisa em retribuição ao que eles provocaram em mim?). Olho as árvores em volta, a rua movimentada, os motores rasgando o asfalto, o estado de sobrevivência, e penso se estou a viver, de verdade. A tecla pause é desligada e a vida continua seu movimento autônomo. A ternura escorre, a comunhão durou pouco; também eu sou feita de desencontros. Uma pergunta grita dentro de mim: o que não fizeste por nós?
Texto e fotos | Ana Gilbert
Relatos e ficções à volta de contextos de vulnerabilidade

“Alice Catarino, Beatriz Passão e Jorge Cardinali abrem-nos janelas para as suas vidas; Manuel Leiria, Nuno Henriques e Jacinto Duro desvelam-nos, com eles, outros recantos dessas casas; Bruno Gaspar, Lisa Teles e Maraia impregnam-nos a imaginação de cor e forma; Elsa Margarida Rodrigues, Mónia Camacho e Paulo Kellerman inundam-nos da luz dos sonhos; Ana Gilbert preenche-nos da matéria que liga as entranhas do espaço e do tempo.
Três cidadãos, três escritores, três ilustradores, três jornalistas e uma investigadora reunidos para dar corpo literário-artístico-jornalístico a uma ideia nascida no Núcleo Distrital de Leiria da EAPN Portugal e acolhida pelo Diário de Leiria, o Jornal de Leiria e o Região de Leiria.
No dia 15 de fevereiro, às 15h, no MiMo – Museu de Imagem e Movimento, em Leiria, vamos partilhar esta obra.”
Quem quiser aparecer, será bem-vindo!

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“avisto a extensão de negro em que depositas
o teu coração em forma de palavras
e perco as minhas pupilas para o mar:
troco as barcas por barcos
visto os pássaros de asas gigantes
agito as águas
empresto sopros ao vento…
às vezes o ondeado das dobras da seda
negro em filamentos entremeados de luz
não deixa ver a inclinação do eixo que diz das tuas estrelas”
Palavras | Isabel Pires (a permanência da memória dos dias de sal)

“Agora, está barricado numa dor que serve apenas para lhe lembrar de onde veio.”
Fotografar palavras
Projeto | Paulo Kellerman
Texto | Mónia Camacho
Foto| Ana Gilbert