A demora

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto [poemas escolhidos]

Clandestino

Na penumbra da tarde,
o mundo morto,
a meu passo, despertava.

Não era o amor
que eu procurava.
Buscava o amar.

Na casa em ruínas,
te despias
para que me deixasse cegar.

Voz transpirada,
suplicavas que te chamasse no escuro.

Em ti, porém,
eu amava
quem não tem nome.

Na casa arruinada
te amei e te perdi
como a ave que voa
apenas para voltar a ter corpo.

Na penumbra da tarde,
tu me ensinaste a nascer.

Na noturna claridade
me esqueci
que nunca havias nascido.

Mia Couto [poemas escolhidos]

A demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz,
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto [poemas escolhidos]

Confidência

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

Mia Couto [poemas escolhidos], 2006

sem nome

“Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.”

Mia Couto [poemas escolhidos, 2016]

Cego

Cego é o que fecha os olhos
e não vê nada.

Pálpebras fechadas, vejo luz.
Como quem olha o sol de frente.

Uns chamam escuro
ao crepúsculo
de um sol interior.

Cego é quem só abre os olhos
quando a si mesmo se contempla.

Mia Couto [poemas escolhidos, 2016]

Versos do prisioneiro – A sentença (segunda leitura)

Você
tem que aprender
a respeitar a vida humana, disse o juiz.

Parecia justo.

Mas o juiz
não sabia que, para muitos,
a vida não é humana.

O prisioneiro retorquiu:
há muito me demiti de ser pessoa.

E proferiu, por fim:
um dia,
a nossa vida será, enfim,
viva e nossa.

Mia Couto [poemas escolhidos]