Dose dupla | 2024

Redemoinho

Escovar os dentes após todas as refeições, disseram-me. E, desde muito cedo, eu aprendi esta regra básica de higiene. E continuo a cumpri-la, mesmo quando uma parte da frase está ausente. Refeições. Escovo os dentes com um resto de escova, um resto de pasta, um resto de água, a escorrer, morna, de um copo descartável, que guardo cuidadosamente no meu armário de inventar. Esfrego bem os dentes, as gengivas, a língua. Até sentir ânsia de vômito. Mas não tenho o que vomitar. Na verdade, não sei se essa vontade de vomitar é pelo escovar da língua, pelo estômago vazio, ou por essas pessoas que comem ali, naquele café, e se divertem. Imagino o que conversam, imagino o som dos risos, as pernas que se tocam, discretas, por baixo da mesa, insinuando amanhãs, essa palavra que vou esquecendo o significado aos poucos. Ninguém vai querer me tocar, não desse jeito. Mas talvez eu ainda tenha esperança e, por isso, escove os dentes. Durmo perto desse café por causa do cheiro de pão recém-saído do forno, logo de manhã cedo e da refeição que recebo depois. Cheiro de uma infância feliz, ou quase. Na minha rotina de todos os dias, guardo o meu colchão de papelão num espaço estreito entre dois edifícios, que faço de esconderijo. As brechas me fazem sentir seguro. Como naquela vez. O coração batendo forte, as pernas cansadas de correr, o peso da mão na minha perna. Preciso voltar a escovar os dentes. Até enjoar, porque o estômago está vazio de novo. Olho a água que escorre pela sarjeta, com espuma de pasta e cuspe. E penso nesta imensidão que é a rua. O jeito que a água faz um pequeno redemoinho perto do bueiro me confunde e me faz pensar naquele dia. O revoar no colo de alguém, para depois tombar, num abismo sem fim. A velha dor na perna. A sujeira nos dentes. O estômago vazio. A ânsia. Um riso ao longe e a mulher que passa e me olha. Ela tem um olhar que penetra. Vê as minhas feridas. Encaramo-nos por momentos, a escova suspensa, a baba a escorrer. Os olhos lacrimejam. Ela sabe o que eu sei. O redemoinho dá mais uma volta e tudo é invadido de branco. Ao longe, uma sirene.

(Prêmio Off Flip 2024, categoria Conto)

*****

Afirmação

tenho a pele marcada
da roupa
da idade
de ti

nem sei

tenho o prazer tatuado em mim
como um rastro que deixaste
ainda ontem
ou anteontem

nem sei

tenho o sonho escondido nas dobras
a busca entranhada na alma
a vontade de seguir
sem ti

eu sei

(Prêmio Off Flip 2024, categoria Poesia)

Selo Off Flip

A escrita

“A escrita se faz naquilo que se perde. Ou: no que resta da perda. No excesso.”
Tatiana Salem Levy (Melhor não contar)

6 anos de sutilezas…

Mais um ano… mais pessoas que se aproximam… e isso faz todo o trabalho valer a pena.

Um obrigada gigante a quem se mantém por perto e frequenta regularmente esta minha casa… mas também a quem se aventura e chega aqui por acaso ou acidente, mesmo que não se demore. Porque este espaço só se completa com a sua presença e o seu olhar. Espero que faça sentido…

Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre
.” (Manoel de Barros)

Todas as imagens

_“Todas as imagens vão desaparecer.
(…)
as imagens reais ou imaginárias, que permanecem conosco durante o sono”

Annie Ernaux (Os anos)

Conversas Literárias

Conversa sobre o livro Água Viva de Clarice Lispector

O evento contará com a participação das integrantes do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro (IJRJ):

Sigrid Haikel, Maria Lúcia Lorêdo, Áurea Torres e Ana Gilbert

Dia 01 de Outubro de 2021| Sexta-feira, de 14h às 16h.

Valor simbólico de R$ 25,00 que será revertido para Casas das Palmeiras – Nise da Silveira

Informações e inscrições aqui ou no site do IJRJ

Mapas do Confinamento

O projeto MAPAS DO CONFINAMENTO é “um projeto trilingue que une os falantes de português com o intuito de desenhar uma cartografia do confinamento através da arte e da cultura.
Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé, Timor Leste e Diásporas de expressão portuguesa – Bélgica, França, Países Baixos, Reino Unido – são estes os “Mapas do Confinamento” que quase cem artistas, escritora .es, fotógrafa .os, ilustradora .es, poetas, tradutora .es – de todas as origens e sotaques – estão a construir coletivamente em português (mas traduzidos para francês e inglês porque o mundo também é feito de outros idiomas) como forma de assinalar este momento marcante da nossa História.”

Participo com um CONTO e um ENSAIO FOTOGRÁFICO .

NÓS (conto)

Não sei o teu nome, nunca tive coragem de perguntar. Mas somos vizinhas. De vida. Habitamos a mesma pele, ainda que muitos metros de tecido esgarçado nos separem. Não sei onde estás; passo pelos lugares de costume e vejo somente a tua ausência. Em que calçada te sentas agora?

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A SOMBRA DOS DIAS (ensaio fotográfico)

Fotografo a sombra dos dias para ter a certeza de que eles passam.

A sombra da saudade

ensaio completo disponível aqui

O mar

O mar em redor de mim – não tanto uma casa para habitar, mais para estar.”

Palavras | Ondjaki (Coração com ferrugem, E se amanhã o medo)

Percebes?

“Como se a minha vida, a minha presença naquela casa, apenas fizesse verdadeiro sentido enquanto falasse e o silêncio pudesse ser sinónimo de uma espécie de não existência. Percebes?”

Palavras | Paulo Kellerman (Coleccionador de eventos, Mente-me e seremos mais felizes, Escrytos, 2013)

Paulo Kellerman: 25 anos de atividade literária

Um tigre à porta da Sé

“Quem somos quando não somos nós?”

Palavras | Mónia Camacho (Um tigre à porta da Sé)

Esta pergunta ecoa por todo o livro da Mónia Camacho. E lateja dentro de mim. Convida-nos a percorrer o caminho em busca do que somos, de como nos definimos perante nós mesmos e os outros, e a pensar sobre o ato da escrita. Leva-nos a refletir sobre as fronteiras que criamos numa tentativa de nos dar contornos e de nos proteger do outro, mas que podem sufocar com acúmulos que não dizem de nós. Somos o que imaginamos ser? Podemos imaginar o que somos? Reescrever o que somos?

clareza

se eu tivesse que escolher uma cor para as tuas palavras seria o cinza.
não pelo negrume da tristeza. bonito esse teu negrume. seria pela calma. é isso. pela calma que me trazes às margens das manhãs ou das tardes.
conforme a inclinação do sol.

as tuas palavras só não têm a cor branca porque não as descobriria nesta folha.
mas são brancos, esses bordados de luz que te escorrem entre os dedos.

Palavras | Isabel Pires (a permanência da memória dos dias de sal)

Zona crepuscular

É fim de tarde, o sol desce no horizonte e traz aquele silêncio de um tempo limítrofe. A água do mar me chama, num apelo surdo, hipnótico. Entro devagarinho e sinto o silêncio; sobe cálido pelos pés, pernas, contornos, sexo, cintura. Mergulho e a água envolve-me como um afago. Sinto o corpo distensionar, músculo a músculo, fibra a fibra, poros e pensamentos. Inspiro e o silêncio me penetra, ecoa pelo corpo, expande os pulmões, aquieta a pulsação, suspende o tempo. O vento sopra solidão sobre a pele.

Mexo mãos e pés, deslizo dedos sobre superfícies imaginárias, o teu corpo, o meu. Os olhos fechados tornam-se lúcidos; voltam-se para outro mundo, aquele que deixei há tantas vidas. Nele me encontro, e vejo-te, à espera. Estiveste sempre aí? O toque se materializa e sinto: são arraias, grandes e pequenas, várias, muitas, numa dança etérea, um voo fora do ar. Circundam-me, algumas se enterram na areia, como ouro profundo à espera de revelação. Ondulo como elas, voo com elas, deixo-me ficar, entregue a essa liberdade momentânea. Nossas superfícies se encontram, num prazer mútuo.

Subitamente, algo me faz abrir os olhos. Anoiteceu sem que me desse conta. A maré subiu, a água que chegava à cintura quase me cobre inteira. Perdi-me em devaneios e me desnorteei. Volto-me sobressaltada à procura da praia, da textura da areia, da referência. Tenho medo de ser levada pela correnteza. As arraias continuam a nadar, alheias ao meu pânico; elas que eram parte de mim, agora me parecem estranhas, ameaçadoras. Não consigo tocar a areia; engulo a água salgada, engasgo-me. Sinto falta de ar e preciso me concentrar para não afundar por completo. Os olhos abertos não servem para muito na escuridão da realidade. A noite acontece dentro de mim e já não estás.

Percebo que me estou a mover, um nado instintivo que me tira do desespero. Aliviada, agora sei onde está a praia e esforço-me na intenção de chegar até lá. Ganho ritmo, a respiração torna-se cadenciada; a praia está logo ali, à frente, penso, e quase consigo sentir um pouco do prazer de antes. Nado mais e mais, porém algo está diferente, desestabiliza a determinação. Começo a duvidar da direção que escolhi; volto a olhar em redor e não distingo nenhuma silhueta, nenhum vestígio de terra firme. Constato que me enganei: nadei em direção ao mar aberto e não chegarei a lugar algum. O tempo cai pesado sobre mim, empurrando-me para baixo. A exaustão toma conta e já não há volta possível. As arraias voltam a circundar-me; aprisionam-me, fantasmáticas. Fecho novamente os olhos antes da entrega. E penso em ti.

Texto e foto | Ana Gilbert