Ficções do eu

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Comecei o exercício do autorretrato, em 2005, movida pelo interesse em pesquisar sobre aspectos identitários menos óbvios do que a face, considerada elemento identitário por excelência, que nos particulariza e diferencia do outro.
Haveria no gesto, para além do encenado para a fotografia, algo que revelaria aspectos mais profundos do eu e que se traduziriam como marca identitária?

Fotografo-me desde então com essa pergunta em mente, não para reproduzir essa identidade, e sim como um exercício de criação de ‘ficções do eu’ que acontecem a partir dela e vão além.
Fotografo-me como possibilidade de explorar a multiplicidade na inteireza; a fragmentação na coesão.
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Fotos onde incluo o rosto são raras. Creio que esta sequência é a primeira que faço desse tipo. Nesse dia, apeteceu-me. Apenas porque sim.

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I began the self-portrait exercise in 2005, driven by the interest in exploring less obvious aspects of identity than the face, considered an identity element par excellence, which particularizes and differentiates us from others.
Would there be something in the gesture, beyond what is staged for the photograph, that would reveal deeper aspects of the self and that would be translated as an identity mark
?

Since then, I’ve been photographing myself with this question in mind not to reproduce this identity, but rather as an exercise in creating ‘fictions of the self’ that emerge from it and go beyond it.
I photograph myself as a way to explore multiplicity within wholeness and fragmentation within cohesion.

Photos Including my face are rare. I believe this is the first sequence I’ve done of this kind. On that day, I felt like it. Just because.

Clariceana

Meu ensaio fotográfico CLARICEANA está na Revista Tangerine # 10, na companhia de outros trabalhos lindos.

Este ensaio foi inspirado no livro Água Viva, de Clarice Lispector. Nele, autorretratos dialogam com paisagens aquáticas, oníricas em sua fluidez e atemporalidade, onde o dentro e o fora se confundem e se complementam. Juntos, formam paisagens internas, imagens-palavras que convidam à experiência sensorial, ao mergulho em águas profundas, onde luz e sombra se fazem presentes e explicitam tensões.
O fascínio exercido por essa zona limítrofe, a superfície da água, demarca a fronteira entre a vigília e o sono, entre as instâncias da psique (consciência e inconsciente). As imagens nos levam a percorrer trilhas fragmentadas e poéticas, marcadas pela alternância entre movimento e quietude. Experienciamos a relação com o espaço que nos circunda. Um espaço que é ao mesmo tempo externo e interno, Cheio e vazio. Um espaço que se descortina estranho e ampliado quando vislumbrado na superfície refletora da água ou do espelho. Múltiplos espelhos, múltiplas imagens: de nós e do mundo que habitamos e que nos habita. Instantes- já da relação “eu-tu”, coagulados como fotografias. Cenas e o seu avesso. A realidade enviesada.
O ensaio oferece a experiência pura do fluxo de vida, do instante que é como o silêncio que está no silêncio das coisas e não pode ser ouvido, a não ser com o corpo inteiro; como uma realidade que se cria a partir da escuridão e do sonho. A partir da imaginação.
Água, ar, planta, corpo. A alternância entre a sensação de dissolução e a aventura arriscada de fixar a delicadeza do encontro eu-outro, eu-mundo. Clariceana é uma tentativa de capturar o incapturável: a respiração que rege a ordem do mundo, do meu mundo. O ritmo da pulsação. A liberdade de vida e morte. O seu mistério. Efemeridade e eternidade em mim.

“O que importa o amanhã se amanhã já não vais estar aqui e a saudade, qual rosa cravada de espinhos, vai atormentar-me e impedir-me de respirar? Para quê respirar se não posso viver? O que importa o amanhã se não podes ficar?”

Fotografar palavras

Projeto: Paulo Kellerman
Texto: Helena Simão
Foto: Ana Gilbert