FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5133

I

Hoje, no FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5133, a minha leitura fotográfica do belo poema de Ana Paula Jardim.

24 MM

É bem melhor fechar um por-do-sol dentro dos olhos
Abrir planícies infinitas dentro da íris
Como uma lente com 24mm de diâmetro
E dez mil cores todas diferentes
Fotografar esse instante dentro da córnea
Para sempre
Ver sobreiros como desenhos irreais espalhados pela paisagem
Mulheres gigantes com ventres volumosos encostadas
No meio postes de alta tensão
Iluminados
A disparar balas de eletricidade como farpas
Que nos atingem o peito
E nos deixam eletrocutadas contra o banco
Ficar quieta como uma gazela amarrada no tejadilho
Depois de um dia de caça
Passar por pastagens e ver rebanhos de animais
Reconhecê-los como iguais
Comendo a mansidão e a erva do chão
Na engorda
À espera de ir para o matadouro
Para serem degolados.


24 MM

It’s much better to close a sunset inside your eyes
Open infinite plains inside the iris
Like a lens with a diameter of 24mm
And ten thousand different colors
Photographing that instant inside the cornea
Forever
Seeing cork oaks as unreal drawings scattered across the landscape
Giant women with bulging bellies leaning against
In the middle of high-voltage poles
Illuminated
Firing bullets of electricity like barbs
That hit us in the chest
And leave us electrocuted against the bench
Standing still like a gazelle tied to the roof
After a day’s hunting
Passing pastures and seeing herds of animals
Recognizing them as equals
Eating the gentleness and the grass on the ground
Fattening up
Waiting to go to the slaughterhouse
To be beheaded.

Fotografar palavras, uma casa poética onde habitam múltiplas vozes que podem se expressar com liberdade. Criada pelo Paulo Kellerman e cuidada por todos nós. Diariamente, desde 2016.

FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5085

Maria dos Anjos

Não me lembro de ti
Nem do teu rosto
Nem da tua voz ou de te ouvir rezar
Não me lembro das tuas mãos no meu cabelo
Nem do teu colo
Nem do som dos teus passos
Nem do teu cheiro
Não me lembro da cor dos teus olhos a olhar para os meus
Cheios de orações e de infinito
Cheios de cansaço
Não me lembro do teu terço pendurado no teu pescoço antes de ser meu
Não me lembro do teu nome nem do meu nome na tua boca
Nem de me chamares
Nem de me abençoares com palavras antigas ditas em latim
Benedicat tibi Dominus
Não me lembro de seres o meu anjo
Nem do arrastar das tuas asas
Nem de me velares o sono e me guardares dentro da tua alma
Sossegada
Não me lembro se fui um poema casto
Inacabado, intraduzível, dissonante
Ditado por Deus em aramaico e que recitaste por acaso na penumbra da tua cela
Como uma profecia que não se cumpriu
Não me lembro de ser contigo o que não nunca cheguei a ser
O que nunca consegui ser
Só me lembro da tua sombra
A caminhar
Do barulho das tuas vestes num corredor imenso a ecoar como um cântico.

Maria dos Anjos

I don’t remember you
Or your face
Or your voice or hearing you pray
I don’t remember your hands in my hair
Or your lap
Nor the sound of your footsteps
Or the smell of you
I don’t remember the color of your eyes looking into mine
Full of prayers and infinity
Full of weariness
I don’t remember your rosary hanging around your neck before it was mine
I don’t remember your name or my name on your lips
Nor your calling me
Nor blessing me with ancient words spoken in Latin
Benedicat tibi Dominus
I don’t remember you being my angel
Nor the flutter of your wings
Or watching over my sleep and keeping me in your soul
Quiet
I don’t remember if I was a chaste poem
Unfinished, untranslatable, dissonant
Dictated by God in Aramaic and which you recited by chance in the penumbra of your cell
Like a prophecy that didn’t come true
I don’t remember being with you what I never got to be
What I never managed to be
I only remember your shadow
Walking
The rustle of your clothes in an immense corridor echoing like a song.

Poem[a]: Ana Paula Jardim

Fotografar palavras, projeto de talentos e afetos. Criado pelo Paulo Kellerman em 2016. Publicações diárias.

Cais do Ginjal

I

Junto a velhos carris cravados nas lajes do cais do Ginjal
De vagões desativados
E murais com retratos de homens de rosto duro e olhos de carvão
Grafitados nas paredes
E que me ignoram
Caminho desengonçada como quem se procura a si mesma
Uma indígena suburbana de saias levantadas e pernas enfiadas
Numas botas
Beges
Sujas e desajustadas
Nas orelhas umas argolas largas e prateadas
Que fazem um estranho barulho batidas pelo vento
Como música esquecida de um continente
De onde fui deportada

II

Nas grandes estruturas navais
Enferrujadas pelo tempo e esquecidas pela ganância dos homens
A mente pendurada num áspero cordão de aço
Observo o que resta de uma grande herança de homens pescadores
Sentados em bancos e nos pontões
Lançam ao rio espetados em anzóis
Sonhos, quimeras, mágoas, desalentos
Em canas curvadas e gastas pelas horas
E uma vida inteira fechada dentro de uma lata
Como conserva que azedou

III

Nas falésias casas amontoadas em ruínas
Como uma memória em escada
Sem vidros nem olhos nas janelas
Profundas como um abismo
Portas entijoladas com restos de madeira desventradas
Paredes como telas decadentes, cheias de palavras pintadas
Pisos com histórias desmoronadas
E no chão um bosque de gente esquecida
Silvas e arbustos que crescem como um caos
Pelo meio o espectro de uma árvore magnífica
Cheia de frutos rubros como ginjas maduras
Escorrem sonhos viscosos e traídos
Com um perfume que nos embebeda os sentidos

IV

Entalada num pórtico elevatório de barcos
Os pés como rodas sobre barras de ferro que descarrilaram
E ficaram estacionadas no cais do esquecimento
Escuto sons metálicos que ficaram guardados no leito do rio
Mulheres de passo apressado com cestas cheias de artroses na cabeça
Ancas largas, seios fartos e saias rodadas
E um pescoço que ficou torto pelo peso da existência
Espalhados pelo chão como um teatro de sombras
Homens com a alma embarcada em grandes arrastões
Camisas de tecido grosso arregaçadas
Cheios de sal e escamas nos braços que brilham como prata
Um sabor a vinagre na boca
São como páginas de um livro que alguém escreveu
E sepultou nas águas

V

Presos por cordas nos velhos atracadouros
Alinhados no paredão como espectros de ferro
Canoas, fragatas, faluas como navios fantasmas
Velas recolhidas e passageiros em terra
São como uma gigantesca manifestação do passado
Amontoada sobre o cais
Os rostos iluminados pela dourada luz do pôr-do-sol
Como uma despedida
Ficam a olhar petrificados o estranho trânsito fluvial
Cheios de veleiros e embarcações de luxo
Com gente sorridente que lhes acena com a mão

VI

Nas cadeiras desmembradas e atadas com panos
Espalhadas nas grandes plataformas junto a um terminal
Com corpos afundados nos estofos gastos
Sinto-me como Briseida a contemplar o horizonte
Sequestrada como um troféu na guerra de Tróia
Entregue como despojo aos caprichos de um guerreiro
Deixo-me ir na corrente na superfície a boiar
Como uma anémona indiferente
Até desaparecer na foz
Para trás a flutuar gentilmente com boias de salvação
Um Cacilheiro velho
E um Mestre cansado de navegar
Liga o motor para alcançar a outra margem.

***

Ginjal Pier

I

Next to old rails embedded in the slabs of the Ginjal pier
Of decommissioned wagons
And murals with portraits of men with hard faces and charcoal eyes
Graffitied on the walls
And who ignore me
I walk awkwardly like someone looking for herself
A suburban indigenous woman with her skirts up and her legs tucked in
In boots
Beige
Dirty and mismatched
In her ears, wide silver rings
That make a strange noise when the wind hits them
Like forgotten music from a continent
From where I was deported

II

In the great naval structures
Rusted by time and forgotten by the greed of men
My mind hangs on a rough steel cord
I observe what remains of a great heritage of fishermen
Sitting on benches and piers
Throwing hooks into the river
Dreams, chimeras, sorrows, discouragements
On reeds bent and worn by the hours
And a lifetime locked up in a can
Like preserves that have gone sour

III

On the cliffs houses heaped in ruins
Like a memory on a staircase
Without glass or eyes in the windows
Deep as an abyss
Doors hinged with the remains of gutted wood
Walls like decaying canvases, full of painted words
Floors with crumbling stories
And on the ground a forest of forgotten people
Brambles and bushes that grow like chaos
In the middle the spectre of a magnificent tree
Filled with fruits as red as ripe sour cherries
Slimy, betrayed dreams drip down
With a perfume that drenches our senses

IV

Trapped in a boat lifting gantry
Feet like wheels on iron bars that have derailed
And were parked on the quay of oblivion
I hear metallic sounds that have been stored in the riverbed
Women in a hurry with baskets full of arthritis on their heads
Wide hips, full breasts and swirling skirts
And a neck that was twisted by the weight of existence
Scattered across the floor like a shadow theater
Men with their souls on large trawlers
Thick fabric shirts rolled up
Full of salt and scales on their arms that shine like silver
A taste of vinegar in the mouth
They’re like pages from a book that someone wrote
And buried in the waters

V

Bound by ropes on the old moorings
Lined up on the wall like iron spectres
Canoes, frigates, sloops like ghost ships
Sails down and passengers ashore
They are like a gigantic manifestation of the past
Piled up on the quay
Their faces illuminated by the golden light of sunset
Like a farewell
They stare petrified at the strange river traffic
Full of sailing ships and luxury boats
With smiling people waving their hands

VI

On the dismembered chairs tied with cloths
Spread out on the large platforms next to a terminal
With bodies sunk into the worn upholstery
I feel like Briseida gazing at the horizon
Kidnapped like a trophy in the Trojan War
Delivered as spoils to the whims of a warrior
I let myself go in the current, floating on the surface
Like an indifferent anemone
Until I disappear at the mouth
Back gently floating with lifebuoys
An old coxswain
And a Master tired of sailing
Starts the engine to reach the other shore.

O belo poema | the beautiful poem: Ana Paula Jardim

FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5043

Projeto | project: Paulo Kellerman

Fotografar palavras # 4467

Liturgias

Poemas são orações que se escutam nas ruínas de um convento
São rezas matinais em busca da salvação
Poemas são murmúrios de monjas enclausuradas
Que escrevem palavras ilegíveis com os pés no chão de pedra
São como credos depositados no altar para dizer a nossa solidão
Poemas são cânticos de louvor entoados por anjos exilados
Em igrejas à espera de libertação
Anunciações de uma verdade pura e redentora
No ventre impossível de uma virgem estéril
Contas de um rosário de Ave Marias
A procurar narrar o mistério do mundo
Poemas são flagelos
Chagas abertas em corpos incomunicáveis e crucificados como o meu
Sem sacrifício ou Agnus Dei profético que o consiga resgatar
Poemas são rituais litúrgicos
Pautas de música gregoriana com o som da tua voz a ecoar dentro de mim
Livro de Salmos de um amor impossível.

Liturgies

Poems are prayers heard in the ruins of a convent
They are morning prayers in search of salvation
Poems are the murmurs of cloistered nuns
Who write illegible words with their feet on the stone floor
They are like creeds placed on the altar to tell of our loneliness
Poems are songs of praise sung by exiled angels
In churches waiting for liberation
Announcements of a pure and redeeming truth
In the impossible womb of a sterile virgin
Beads from a rosary of Hail Marys
Trying to narrate the mystery of the world
Poems are scourges
Open wounds on incommunicable and crucified bodies like mine
With no sacrifice or prophetic Agnus Dei to rescue it
Poems are liturgical rituals
Staves of Gregorian music with the sound of your voice echoing inside me
A book of Psalms for an impossible love.

Texto | Text: Ana Paula Jardim
Fotografia | Photography: Ana Gilbert

FOTOGRAFAR PALAVRAS, este nosso projeto bonito, criado e dinamizado pelo Paulo Kellerman

Fotografar palavras # 4398

Questionamento

A imortalidade da alma?
Só penso nisso quando estou distraída
E nunca ao amanhecer e antes de tomar café
Que ainda carrego as ideias doentes de noites mal dormidas
A minha noção de alma é mais homérica
Tipo fumaça ou sombra que se desprende do corpo
Ou então um sopro em vão à maneira de Anaxímenes
Também tenho almas místicas, órficas e pitagóricas
Depende dos dias
Nunca platónicas de forma imortal
Não vá a reminiscência de algum marginal
Criminoso ou esquizofrénico fazer ninho dentro de mim para sempre
Não sei nada sobre estas questões
Nem tenho paciência para as discutir em dias que tenho a mente do avesso
Só sentir a alma em quedas verticais dentro de mim.

Questioning

The immortality of the soul?
I only think about it when I’m distracted
And never at dawn and before drinking coffee
Because I’m still carrying the sick ideas of bad nights
My notion of the soul is more homeric
Like smoke or a shadow that detaches itself from the body
Or a breath in vain in the manner of Anaximenes
I also have mystical, Orphic and Pythagorean souls
It depends on the day
Never platonic in an immortal way
Don’t go reminiscing about some outcast
Criminal or schizophrenic nest inside me forever
I don’t know anything about these issues
Nor do I have the patience to discuss them on days when my mind is inside out
I can only feel my soul falling vertically inside me.

Texto | Text: Ana Paula Jardim
Fotografia | Photography: Ana Gilbert

Fotografar palavras, a nossa casa de criação. Projeto criado e coordenado por Paulo Kellerman. Publicações diárias, desde 2016.