Uca

UCA, o livro de Ana Sofia Elias, é viagem demorada, sem volta.
Lisérgica.
Uca é desajuste.
É dor partilhada, sonho segredado, fantasia projetada.
Uca é pausa, lugar de descanso inquieto, de entrega temerosa. E prazerosa.
Uca é desafio da fala, é dança cantada.
Dança das palavras, por vezes, descompassada.
É grito mudo.
Ensurdecedor.
É beleza delicada e pulsante.
É toque sutil. Por vezes, soco no estômago.
Desdobra-nos pelo caminho e já não conseguimos refazer o origami que um dia fomos.

Uca é Ana.
E esta Ana que escreve espelha a Ana que escreveu.

Anas em voo livre.

***

Escantilhão

Quando eu nasci
Deus entregou-me um escantilhão e, desde esse dia, tenho sido uma recortadora de vida
Sigo entretida
a passá-la por um escantilhão
e a ser escantilhada por ela

Esse tal Deus que não tem nome – mas desceu para me visitar –
deu-me olhos de lince
e fome de me deslumbrar

    Os olhos de lince servem para
    caçar as coisas delicadas
    que gostam de brincar às escondidas
    com os meros mortais
    para quem elas passam despercebidas
    e desiguais

    O Deus anónimo
    também me deu mãos de violino
    para fabricar delicadezas a partir da cidade que me rodeia
    e o que me rodeia é esta sala que faz parte desta casa
    que habita neste bairro
    que um dia, tal como eu, também nasceu desta cidade

    Mas este poema não é sobre o meu nascimento
    É sobre a minha chegada
    Hoje eu sou aquela que chega a ela própria que aterra em si

    Hoje
    eu sou aquela que carrega os intestinos nos olhos
    е a garganta nas mãos

    Faço a digestão de todos as montras do mundo
    através dos olhos
    E respiro o mundo dos coisas e das cidades pelos pulmões das mãos.

    O delicado é
    o meu fado.

    Ana Sofia Elias (Uca, 2024)

    Que o ciúme não te adelgace

    Crescer nos acentos perpétuas cobras d’água e logo a seguir
    para que o ciúme não te adelgace
    Pela cauda desengomo-te virgulados alguns actos
    entre uma mornura de focinhos islandeses
    {rafeiras arfadas}
    e o inteira me prumares recatada.

    Tibar-nos, como se tiba a latina linguagem, julgo branco e impossível.

    Texto da Ana Sofia Elias e foto minha

    [do nosso baú imaginado de imagens e palavras ardentes]

    FOTOGRAFAR PALAVRAS # 5237

    Elas, mulheres algodoeiras do mar 

    Estendidas por uma vasta praia 

    -com bosques dourados, falésias amaciantes, templos, rios, lagos e estradas sem cavalos voadores ou torangeiras, onde palácios vermelhos, jardins suspensos e torres de cúpulas brancas espelhavam as nossas malváceas damascenas – 

    Nessa praia, estas palavras.
    De musselina tridente 
    têm-nos presas a nenhum lírio fixo. 

    Pequenas mordidelas atlântidas 
    de plâncton saciante 
    que não ficaram presas ao anzol de frésia.

    Deitadas, agachadas, hirtas 
    como a renda que ainda não madrugou na água 
    Mulheres algodoeiras do mar
    colhem palavras abracadabrantes 

    O poema acontece na costura a linha de peixe 
    onde penduram pedras preciosas, quase invisíveis.

    E o som é de figo maduro tragado a meia romã 
    Porque é na Pangeia da manhã 
    que se provam as despedidas e os orvalhos. 

    *****

    Them, cotton-harvester women of the sea

    Spread across a vast shore

    —with golden woods, softening cliffs, temples, rivers, lakes,
    and roads untraveled by flying horses or grapefruit trees, where crimson palaces, hanging gardens, and white-domed towers
    mirrored our damascene mallows—

    On that shore, these words.
    Of trident muslin,
    they keep us bound to no fixed lily.

    Small Atlantidean nibbles
    of satiating plankton
    never caught on a freesia fishhook.

    Reclining, crouched, upright—
    like lace not yet awakened in water—
    Cotton-harvester women of the sea
    gather abracadabra-like words.

    The poem takes shape along the fishline-made seam
    where they hang near-invisible gems.

    And the sound is that of ripe fig
    swallowed with half a pomegranate—
    For it is in each morning’s Pangaea
    that farewells and dewdrops are tasted.


    Texto | Text: Ana Sofia Elias (com interferência de | with interference by Ana Gilbert)

    Fotografia | Photography: Ana Gilbert (com interferência de | with interference by Ana Sofia Elias)

    FOTOGRAFAR PALAVRAS, projeto desenhado pelo Paulo Kellerman, é casa para imaginar e criar.
    Diariamente, desde 2016.

    Na launderette

    A secagem seguiu a lavagem
    O ciclo da limpeza deixava-a impaciente,
    como quem compra champô de lêndeas
    e, com um pente fino, escova o cabelo
    da raiz à ponta.

    Queria brincar de observadora
    mas a porta não era de vidro
    nem tinha papel.


    Se isto não acabar em 5 minutos tudo morre.
    Ficou mas não ficou.
    Acaba de secar no hotel.

    Isso foi o jeito dela me dizer: e tudo não morreu na passagem lenta do tempo sem piruetas.

    Cumplicidades com a Ana Sofia Elias

    Capella Magna

    Pestanejamos nimbos e naipes inventraçados.

    Simples escovadoras
    a perolizar
    a capela sistina
    das palavras.

    Escovamos com pestanas opala-arlequim.
    Cardealinas, sangue-de-Adão.

    Assim nascem(os) sonhos e perolices.

    Poema | Ana Sofia Elias

    As aldeãs

    Como se estivéssemos sentadas
    Nas escadas da casa do bairro
    A cumprimentar as aldeãs aprilinas
    Nácares perolizantes
    cabelo de copas e espadas
    Preso com um gancho
    a lembrar os países que ainda não conheço.

    Estadualizei o carpo negro na cruz opalina que levavam ao peito
    Só a minha linchagem
    era de cor anilada
    Enrugamento no céu da boca

    E pestanejámos palavras nimbadas enquanto os castores e as rosas-de-toucar azulinavam os valetes e as damas e toscanejavam num murmúrio verdeal.

    [o belo poema de Ana Sofia Elias]

    Guardanapo

    Copiosamente, a mão esquerda que alisa os lugares acantonados.

    Copiosamente, reparo.

    A sensualidade tem cheiro de filme:

    mãos garrafais
    queixo nas mãos.
    Espelho.
    Madeira sólida.
    Arrisco histórias.

    Cabelos
    que chamam dedos que os acariciem.
    Um pescoço que pede uma boca
    E agora?

    Indefinível.
    Leve desleixo.
    Também a sensualidade
    Furou as nuvens.

    _____

    BLACK OUT POETRY do meu conto Histórias possíveis (A respiração do tempo, Minimalista, 2022), pela bonita Ana Sofia Elias.

    A(ero)NA(ve)S

    Duas Anas numa aeronave improvisada a (des)pilotar a caminho de. Pausa e ponto de interrogação. Tocamo-nos no escuro e iluminamos arquipélagos. Fluida-Mente.

    Esta é uma colaboração especial que nasceu de um exercício de escrita orgânico e fascinante entre mim e a Ana e de um lugar de curiosidade mútua.

    A(ero)NA(ve)S

    {~Texto zipado para desdobrar em imagens~}

    e o que queres fazer?

    Eros, erótico, está sempre presente na criação

    O dedo (in)vísivel

    que percorre a pele da palavra

    e os poros da fotografia.

    Captar o hálito da imagem

    e fugir do hábito da palavra

    para habitar a palavra

    que faz montanhas parirem retratos

    || parir em retratos

    o desejo que se vê

    dentro da cabana do acento circunflexo

    havia fios de trama || ou ele passa por baixo || ou ele passa por cima ||

    dos fios de urdume ||

    é o jacquard de entre_peles

    que nos veste a timidez

    e desloca inflexões

      – Passa-me um Marlboro. Ali atrás da persiana

    (ecoo-me para tocar-te)

    O arranha-céus de jacquard rasga o tecto da cabana

    Delírio a céu aberto.

    *****

    [O texto foi escrito a quatro mãos com a Ana Sofia Elias | a foto é minha]