Existência

Não sei bem como começou. Há muito que os dias estão sem contornos. Só sei das horas em que consigo fumar e esquecer de mim. Porque não há nada na minha vida antes da rua de que valha a pena lembrar; porque não sou sequer uma pessoa. Sinto que vou perdendo pedaços pelas ruas por onde vagueio; eles aderem às escadas calçadas bancos onde me encosto. Ficam os buracos na carne. Por eles, vaza a podridão da minha existência. Estou condenado a este presente sem horizonte. Durmo e acordo neste agora, que me engole com a voracidade traiçoeira de um pântano. Debato-me e não saio do lugar. Não há onde possa segurar, alguém que me possa amparar. Apenas este sabor a morte, este cheiro acre que me devolve a presença do mundo, este mundo feito de mijo, vômito e merda. Afundo.

Por vezes, penso que poderia ser um sonho ruim. E que acordaria sobressaltado e ofegante ao som de um despertador qualquer, numa cama feita de branco. Ao meu lado, alguém pousaria a mão sobre a minha pele assustada e diria que está tudo bem. Talvez um dia aconteça, se eu quiser muito. Mas não sei como é querer, desejar algo, ser desejado. Não consigo imaginar, imaginar-me, perceber o que sustenta os meus fragmentos. Sei apenas da exaltação anestesiante que o fumo me traz; da consciência aguda dos movimentos do corpo. E da vontade de foder, não importa com quem. Por instantes, a necessidade insaciável do corpo, o pau intumescido a penetrar em outro corpo, tão sem contornos quanto o meu, basta para apagar dos meus olhos o desejo de ver a beleza que não faz parte de mim. Depois da explosão do gozo sem prazer, é o afastar dos corpos suados, a respiração agitada, a pele sem registros, o vazio. Não sei quando foi a última vez que comi. O ódio aplaca a fome. Revirar as lixeiras exaure. Ou é esta existência informe que cansa; o olhar de nojo das pessoas que passam por mim e viram a cara para que a minha imagem não lhes invada os sonhos. Cansa esta realidade partida, feita de planos sobrepostos não comunicantes, com seus enredos e encenações; películas elásticas que se deformam ao toque e engolem a voz.

Não sei bem como começou. Uma angústia envolta em fogo e dor. Ele estava ali, deitado na praça, e me incomodou desde o primeiro momento em que o vi. Tem algo que não tenho e quero e preciso. Uma altivez, um ar de interesse, uma fagulha de vida. Quis conversar comigo. Insistente. Falava de algo, não me lembro o quê, talvez sobre passados e famílias. Resmunguei qualquer coisa e tentei sair fora; sentei no meu canto feito de papelão e fechei os olhos. Tinha acabado de fumar e senti o ódio crescer no peito e nas mãos. O corpo a se agitar. Pensei que poderia deixar de estar ali, desaparecer, sair caminhando pelas ruas, encontrar um cachorro e despejar nele o meu desespero. Mas a voz, irritante irritante irritante, continuou.

– Para, chega – levanto-me, parto para cima dele, desprevenido e entregue, olhos assustados, meus dedos selvagens agarram os cabelos, já não distingo dedo e fio, começo a golpear a sua cabeça contra o piso da calçada, não sinto nada, não vejo os seus esgares de dor, não escuto os seus murmúrios, recuso a sua humanidade, desprezível como a minha, vejo o sangue da vida entreaberta a escorrer na calçada, ganho força e sei naquele minuto que ele deve morrer, o ritmo das batidas é constante, confunde-se com as pancadas do meu coração, somos um nesta dança frenética e mortal, escuto um estalar de ossos e o prazer de imaginar a face deformada aumenta-me o tamanho, sinto-me um gigante invencível, sou violência e ocupo um espaço neste mundo feito de praça e sangue, sou corpo e existo fora do pântano, sou ritmo e o tempo volta a passar [explosão]

(in A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

Quando a Jukebox Poet Ana Sofia Elias encontra A Respiração do Tempo

foto minha para o desenho preciso (em forma de texto) da Ana Sofia Elias

A PONTILHISTA 

Na respiração do tempo (Minimalista, 2022), Ana Gilbert combina uma escrita ortogonal e com letra de médico com o pontilhismo da poesia. 

***

Ana Gilbert apresenta-se como uma contista pontilhista e, eu suspeito que isso só seja possível por ser uma artista multifacetada que traz para a escrita o contágio, a contaminação de outras artes. 

Aqui, o tempo (subjectivo e colectivo) – objecto literário escorregadio – tem cor, tem cinematografia (Vardaniana, Kar-Waiana) tem fotogrametria e, por isso, tem respiração. Respirar o tempo no tempo de hoje é muito desafiante e, paradoxalmente, sufocante. 

Um livro que traça os caminhos do sangue e do oxigénio, ´o movimento lento – sístoles e diástoles – invisível aos olhos apenas respirável´ – e que nos convida à respiração do tempo – mesmo quando nos encosta contra a violência do sufoco – é, por isso, importante. 

´A terra vibra em agonia insuspeita, reverberando fundo e mais fundo, alastrando um grito calado pelo horror. Os homens marcham como demônios. Desarticulados do mundo, as passadas firmes e lentas, e as pessoas olham como se de um filme se tratasse. Ou de uma excentricidade. Uma criança entorta o olhar e vê a arma de outro ângulo. Pensa que é uma brincadeira. E eles seguem. Esmagam o miolo delicado da flor – um dedo; torcem o caule da erva que se espalha – o mamilo de um seio quente. Pisoteiam o cigarro jogado ao chão, que queima lentamente a terra – a vulva que se oferece ao carinho.´ (p. 80, conto Convulsão).

A capacidade de Ana Gilbert para tornar o invisível respirável chega sem pré-aviso. Faz da visualidade, (i)respirabilidade – a partir do olhar dela que é nosso, emprestado. Os olhos-pulmões são centrais nestes contos – olhos cegos, fechados, lacrados, concentrados, tortos, sós, vazios, perdidos, afogados, cansados, melancólicos, aquosos, inquietos, mas também lúcidos, espantados, sonhadores e atravessados de poesia. 

Detive-me nesta fotogrametria do parto tão poética – ´Nasces. Como um poema. Lápis em atrito, a despejar palavras desordenadas no papel. Arranhaduras de pele com pele, em abalos convulsivos. A sensação viscosa de morte iminente. A explosão que te leva a uma outra vida num mundo aterrador. (…) Leio-te em voz alta. Reconheço-te. Poema escorreito que desembocou na margem, enfim.´ (p. 65, conto A hora)

Do parto à morte, das mortes aos partos, Ana Gilbert ´Vai repassando as imagens, como num carrossel para diapositivos. A escrita, os fragmentos, os olhos, o olhar.´(p. 38). No tempo sombrio do presente manter os olhos abertos – e continuar a respirar –  é um acto de coragem e resistência. 

´O que mostrar, o que querem ver? ´(p. 167)

A resposta chega pelo eco da cineasta francesa Agnès Varda: ´If we opened people we´d find landscapes´. Os contos de Ana Gilbert abrem. E encontram atmosferas e superfícies subjectivas cujos eixos, linhas e planos se cruzam formando ângulos rectos de 90 graus. Muros de violência e trauma (luto, solidão, morte, dor, desistência, entropia) encontram chãos ´com um resto de vida ´(p. 27) – prazer e sonhos. 

Paredes e chão formam, então, um L perfeito onde o tempo respira: ´movo-me no tempo abissal dos afectos´(p. 26).  ´Era ela com ela, era ela sem ela.´(p. 14-15)  Comunhão e ausência. Queda e voo. 

A sua escrita é, por isso, ortogonal. Atravessada pela perpendicularidade emocional mas também pela perpendicularidade narrativa. Em muitos dos contos, vira do avesso as personagens e a direcção narrativa. E como é frustrantemente prazerosa a ausência de um arco climático resolutivo ou a presença de um desfecho ambíguo ou opaco ou inesperado. Aí ´Não há tempo, apenas intervalo ´. (p. 50) (Para a nossa imaginação.)

Gosto deste elemento na escrita da Ana – dá intervalos para a decifração e para a ausência dela. Escreve contos com letra de médico – com ambiguidade e ofuscação (talvez porque é isso que acontece com a mecânica da memória que atravessa todos os contos e talvez com a própria mecânica do consultório de psicanálise). 

No que toca ao erotismo isso é particularmente triunfante. Há pouco erotismo com letra de médico – o meu predileto – na literatura contemporânea, mas a Ana consegue trazer-nos essa caligrafia. Uma caligrafia que parece beber da estética cinematográfica do género dito ´doomed romance ´ com o seu clássico In the Mood for Love de Wong Kar-Wai (2000).

No conto Circum-ambulação a circularidade da escrita cria um efeito de slow motion/câmara lenta, repetição, e mise-en-scène que coloca um holofote no objecto do desejo e na sensação do desejo. Eu não preciso de saber porque é que os protagonistas repararam um no outro para respirar a (in)visibilidade do desejo ou o papel das projeções e defesas – anunciado no espelho – nesse mesmo desejo. O conto não oferece intensidade no desenvolvimento da história e no preenchimento – teatralização ou encenação – das personagens,  preferindo uma lenta, arrastada e obsessiva recolha de um momento subtil para disparar e intensificar a emoção. Cada novo reescrever da mesma pergunta a três vozes (do homem, da mulher e do espelho), acrescenta e dilata a tensão porque satisfaz e frustra. A clareza e a opacidade do desejo no mesmo shot. Cair dentro do pântano, da areia movediça do desejo é muito mais diastólico e sistólico para a respiração do leitor. Deixa o sangue bombear e o desejo respirar. Esta concessão é uma abordagem interessante para a escrita do erotismo que teima em não se deixar colonizar pelas nossas caligrafias, mas esta, a da Ana, captou-me por olhar de dentro e de fora para a totalizadora e arrebatadora imediatez da sensualidade e da tesão. De fora, porque usa o espelho para convidar o leitor a participar como voyeur com memória do seu próprio tempo e com pele onde esse tempo e o da estória escorrem simultaneamente – duas bocas acesas no mesmo fogão que exigem atenção. 

No conto Histórias possíveis fui levada para a cinematografia do filme Porto (Gabe Klinger, 2017) mas fico-me por uma aproximação muito tímida: ´The camera is a voyeur, looking in at this relationship from without, perhaps from around the corner of a wall, through a window, from another booth in a restaurant, or through a mirror. ´ (online review no site Reddit). Serve isto para realçar que, neste conto, a perpendicularidade narrativa é sublimada.

No entanto, dizer que a Ana escreve com letra de médico não significa o encontro com uma escrita clínica. Pelo contrário, a prosa é poética porque pontilhista. Não é fácil escrever a respiração das emoções mas (tal como fez com o erotismo), Ana Gilbert consegue-o ao entregar-se a uma pintura de pontos com as palavras. 

Contista pontilhista, estilisticamente aplica pequenos pontos de cor pura lado a lado na tela do papel (em vez de misturá-los na paleta) que, à distância, se misturam opticamente, criando uma imagem mais vibrante e luminosa mesmo quando aquilo que o tempo (da leitura) respira (e nos dá a respirar) é sombrio e violento – tão violento que a nossa própria respiração fica suspensa, comprometida, engasgada, presa, sufocada. Isso aconteceu-me nos contos Convulsão e Estado onírico: ´ Um gato se aproxima, atraído pelo odor dos peixes. O homem cego toma o gato como se peixe fosse e esfrega o gato/peixe para lhe tirar as escamas/pele. O gato morre em carne viva e o homem cego sorri em sua máscara grotesca. Tenho nojo. ´(p. 73).  

A pintura de pontos começa logo na seleção de micro-contos que precedem cada conto.  As cores são puras. Evita o uso de cores misturadas para obter uma maior intensidade e luminosidade na sua escrita (como já vimos em relação ao erotismo).  Zona crepuscular impressionou-me pela beleza da cor da nostalgia que ela consegue isolar através do carácter fantástico e evocativo da sua escrita: ´Estiveste sempre aí? O toque se materializa e sinto: são as raias, grandes e pequenas, várias, muitas, numa dança etérea, um voo fora do ar. Circundam-me, algumas se enterram na areia, como ouro à espera de revelação. Ondulo como elas, voo como elas, deixo-me ficar, entregue a essa liberdade momentânea. Nossas superfícies se encontram, num prazer mútuo.´ (p. 107). Para mim, a raia foi um desses pontos de cor pura que não precisa ser misturado à priori com outras cores, outros pontos – o súbito anoitecer, a maré alta, a correnteza – para criar uma ilusão sensorial que está, afinal, enraizada na minha própria realidade. Isto acontece por causa da ilusão óptica, quando ela me convida a ser a misturadora interpretativa das cores que ela pinga para o papel. Uma espécie de ilusão de Chevreul mas no plano literário. Encontramos bordas brilhantes entre tiras adjacentes de cores puras. 

´ Fragmento a fragmento, dia após dia. Um mosaico de imagens, um tipo de colagem que reunia as suas partes dispersas. Ando em busca dos fragmentos de mim como naqueles quebra-cabeças de infinitas peças.´(p. 37, conto A Guardiã de sonhos). 

As cores dominantes – azul e vermelho.

´Uma nuvem de pássaros tinge o azul do céu com gritos vermelhos. ´(p. 80); ` A onda apareceu diante dela, o vermelho alastrou-se, o vale foi inundado.´ (p.37).

Nos 29 contos que dão corpo ao livro, este ´carnaval de rua ´(p.35) co-existe com uma tela a preto e branco, lembrando-me a estética do filme Poor Things de Yorgos Lanthimos (2023) em que opressão (pathos) e liberdade/emancipação (a sede de aventura, descoberta, inocência, curiosidade, surpresa e re-aprendizagem do mundo) não seguem uma lógica linear (uma lógica que é perturbadora e mágica ao mesmo tempo):

nenhum sorriso, apenas eletricidade; corrente contínua em circuito fechado. as duas, etéreas, no lugar do não-lugar, em travessia. azul.” (p.45)

´sinto-me um gigante invencível, sou violência e ocupo um espaço neste mundo feito de praça e sangue, sou corpo e existo fora do pântano, sou ritmo e o tempo volta a passar [explosão]´ (p.57). 

Explosivo é o ritmo e o encontro com as ilustrações delicadamente pontilhistas da Maraia – ´a escrita precisa de pele´. Também o minimalismo da edição respeita os poros da escrita.

O último fio de prumo que vou lançar para dentro deste livro violentamente bonito recai sobre os contos Meditação, Cena e Escrita onde encontro um paralelo com Helena Almeida, uma das artistas plásticas mais importantes da arte contemporânea portuguesa. Ana Gilbert reflecte sobre o uso do auto-retrato e sobre o processo criativo com a mestria inspirada – leia-se liberdade, multidisciplinaridade e experimentalismo – com que Helena Almeida criava.

´Ando em círculo; os ciclos voltam. O trabalho nunca está completo, tem de se voltar a fazer. O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o teto, o canto, o chão; depois, o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções. São maneiras de contar uma história´. (Helena Almeida, citada em: Carlos, Isabel – Helena Almeida: Dias quase tranquilos. Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p. 13.)

No diálogo imaginário que me atrevo a entreter Ana Gilbert responderia: ´Começou a tecer sua própria filigrana e se descobriu capaz de criar parcerias de enfeitiçada sonoridade que ecoavam no espaço, provocando a sua estabilização. O tempo encolheu e ganhou a regularidade do ritmo; aos poucos, as formas começaram a ganhar definição. Olhou-se ao espelho e percebeu as mudanças. A pele, tornada texto, reluzia.´ (p.173).

Não é por acaso que o meu primeiro ímpeto quando li Ana Gilbert tenha sido escrever um poema blackout a partir do pontilhismo reluzente de um dos seus contos. Foi um desvio egoísta, pressentindo que ao escrever ´a sério ´ sobre o que ela escreve ´sofreria com a minha incapacidade para decifrar-te ´ (p. 139). Os astrónomos egípcios discordariam de mim, mas existem livros que não se querem alinhados a fio de prumo. No entanto, eu tentei procurar a estrela polar que sustentasse a (tua) poesia. Aqui está[1].

Ana Sofia Elias

24 Junho 2025


[1] Agora vou ´à varanda fumar um cigarro, como de costume´ (p.31) e reler o primeiro parágrafo do conto Existência que começa assim ´Não sei bem como começou. Há muito que os dias estão sem contornos. Só sei das horas em que consigo fumar e esquecer de mim. (…) Debato-me e não saio do lugar. Não há onde possa segurar, alguém que me possa amparar. Apenas este sabor a morte, este cheiro acre que me devolve a presença do mundo, este mundo feito de mijo, vómito e merda. Afundo.´ (p.55). Fumo e espero que a noite chegue para continuar a procurar estrelas polares. De manhã, lançarei mais fios de prumo até piramidizar ´ um mundo em miniatura, feito de vida e verde, que lhe era mostrado por uma mulher que dizia: – Vê: o deserto não é tudo, é apenas preâmbulo de algo que está prestes a brotar… ´ (p. 152). E acredito, frouxamente, em predestinações. Note-se: Frouxamente é um advérbio optimista.


[obrigada é palavra pouca para tanta generosidade]

Circum-ambulação

Ao se observar ao espelho repara no homem atrás dela.
O homem está atrás dela para que repare nele quando se observar ao espelho.
Observa-se ao espelho apenas para reparar no homem atrás dela.
Somente observando-se ao espelho pode reparar no homem atrás dela.
Repara que pode observar pelo espelho o homem atrás dela.
O homem que está atrás repara que ela se observa ao espelho.
O espelho observa que ela repara no homem que está atrás.
Observa-se ao espelho e há um homem atrás dela que repara.
Só observa o homem que está atrás ao reparar nela no espelho.
Observa pelo espelho o homem que repara que está atrás dela.
Repara que o homem atrás dela se observa ao espelho.
O homem atrás dela repara que é observado pelo espelho?
Espelha-se ao ser observada pelo homem atrás que repara nela.
Atrás dela, o homem. Ao observar-se ao espelho, repara.
O espelho atrás repara que o homem a observa.
O homem e ela só se observam porque atrás o espelho repara.
Sendo ela repara que o homem atrás a observa pelo espelho.
Repara no homem que observa atrás do espelho.
Observadora, repara no espelho atrás do homem.
Reparem como observa pelo espelho o homem atrás dela!
O homem atrás repara no espelho e ela observa.
Atrás do espelho o homem e ela reparam e se observam.
Observam que ela repara no homem atrás dela pelo espelho?
Repara-se quando o homem atrás dela a observa pelo espelho.
Observa o espelho atrás do homem. Ele repara nela.
Quando reparará que o homem atrás dela a observa pelo espelho?
Apenas reparando nela pode observar no espelho o homem que está atrás.
Exclusivamente ao espelho pode reparar que é observada pelo homem atrás dela.
E o espelho, reparará que ela e o homem atrás se observam?
Repara no espelho e observa nele o homem que está atrás dela.
Um espelho. Observa-se. Atrás o homem. Repara.
Ela se observa. Atrás, o espelho e o homem que repara.
Subitamente o homem que está atrás repara que é observado por ela no espelho.

(A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

A hora

Acordo sobressaltada de madrugada. Tento identificar alguma dor no meio deste mal-estar difuso, mas o que sinto é solidão. Estive sempre sozinha. E hoje não poderia ser diferente. A barriga de nove meses é acanhada, como que a desculpar-se por existir. E não deveria mesmo existir. O que aconteceu naquele momento era para ser esquecido. Mas não foi. Está aqui. Inteiro. Pulsante.

Algo se mexe por dentro: ossos se afastam, a estrutura se modifica, lenta. Pequeno terremoto interno. Queres nascer. Meu corpo quer te expulsar. A ti, que estiveste comigo durante estas trinta e oito bem contadas semanas. A cama está molhada e fria. As comportas se abriram e a água encharcou os lençóis. Respiro com dificuldade; os dedos tateiam a pele como olhos.

Levanto um pouco atordoada, sei de memória o que é preciso ser feito: mala, táxi, médico. Os gestos trêmulos percorrem a casa guiados apenas pela luz que entra da rua. Os pés descalços caminham, incertos, e sentem o incômodo áspero do piso.

Tenho medo. Acho que tenho muito medo. 

Visto o casaco que foi da mãe. Lembro dela, evoco o seu cheiro e tento imaginar o que sentiu quando eu estava para nascer. Embrulho-me na lã gasta, tantas vezes lavada, e quero que ela me agasalhe como o meu ventre faz contigo. A mãe, mistura de cuidado e distância. Busco o retrato na gaveta. Desejo súbito de tocá-lo neste momento. Estamos as duas. Ela sorri comigo nos braços. Eu sorrio ao olhar a foto. Esforço-me por apreender o que é essencial; não sei se consigo. Retardo a saída, procuro adiar o inevitável.

Dentro do elevador, o espelho observa-me, insensível.

Quando chega o carro, vejo nos olhos do taxista as dúvidas sobre aceitar-me como passageira. É apenas um lampejo e, afinal, permite que entre no carro. Diminui o volume do rádio que despeja notícias da madrugada numa voz pastosa. O trajeto é feito de lembranças dispersas que deslizam pelos fios da iluminação urbana. Reparo nas janelas acesas e imagino vidas. Penso nos bebês que nascem neste exato momento; nos casais que trepam, ou discutem. Nas crianças que acordam de pesadelos e chamam pela mãe. Nas mulheres que sonham em voltar enquanto observam a vista. Voltar para onde?

O desconforto aumenta. A realidade me invade em contrações.

O táxi para diante da emergência do hospital. Percebo que o motorista quer me despachar logo, não vá ter que fazer um parto no meio da madrugada. E, ainda por cima, sujar o banco todo de sangue. Desço com dificuldade e me encaminho para a entrada. Sou recebida ainda na rampa e colocada numa cadeira de rodas. O edifício me engole e eu mal consigo engolir o choro. 

Peregrino pelas salas, vou ouvindo coisas a meu respeito que não identifico bem. Sou tocada, perfurada, verificada, medida. Anônima em meio aos números. Distante de ser pessoa. Aperto as coxas involuntariamente. Por vergonha ou porque, agora descubro, não te quero perder. Penso que ainda é cedo; quero contar as histórias de que sou feita. Desenhar as fronteiras da tua existência. Saber-te na imagem refletida, ainda que eu não te possa ver; perceber a presença na ausência.

Ainda não sei como é ser mãe.

Sou despida das roupas e das palavras que balbucio ofegante sem ser ouvida. Faz frio e o lençol branco e brando que agora me cobre é como a luz infinita que existe na sombra. Os olhos são puro espanto. Mas ninguém repara. Sou um corpo desordenado, a reproduzir espasmos imemoriais que seguem um roteiro que me é desconhecido. O coração acelera com o esforço. O suor escorre. A dor que sinto existe para além do anteparo de pano azul que parece separar a parte instintiva da pensante. Penso o meu corpo ou ele me pensa a mim?

– Respira, força, falta pouco! – ouço.

Algo se rasga dentro de mim e o meu grito não tem som. É um grito feito de certeza e dor. A dor que é nada se comparada ao medo. Acordo para um outro estado de percepção. Sinto as ínfimas sensações. Frementes. O espaço ondula. Mãos trabalham no meu corpo e no teu. As minhas apertam com força as bordas da mesa. Os movimentos são intensos e eu perco o controle. 

Nasces. Como um poema. Lápis em atrito, a despejar palavras desordenadas no papel. Arranhaduras de pele com pele, em abalos convulsivos. A sensação viscosa de morte iminente. A explosão que te leva a uma outra vida num mundo aterrador. Fio que se espalha e nos mantém unidas, mas que carrega o prenúncio da separação. Escrever é saber cortar. Nascer é aprender a ser só. Separada de mim. Apesar de mim. Comigo. Sorrio. Como se fosse a primeira vez. É a primeira vez. Para ti.

Leio-te em voz alta. Reconheço-te. Poema escorreito que desembocou na margem, enfim

(A hora, in A respiração do tempo, Minimalista, 2022)

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Num lugar qualquer

Sobe as escadas, lentamente, num andar que seduz. Olha em direção ao café antes de seguir para a sala de exposição. A saia curta, as pernas bem torneadas, os seios demarcados na blusa. A bolsa a tiracolo, esquecida. Tem a idade da juventude, em que os dias fluem sem pressa. Observa cada quadro com meticulosidade. Concentrada que está, não percebe que é observada. Por mim. E por ti. Talvez tenha reparado em nós, talvez em ti, apenas. Mas comporta-se como que alheia a tudo e todos. E isso é ainda mais sedutor. 

Reparo que tens os olhos fixos nela. Acompanhas cada passo, cada movimento daquele corpo. Os olhos brilham, cedes à atração. Do corpo ou da história imaginada? Não sei e isso me excita.

Sei que começas a construir-lhe uma história. Idade, ocupação, relações. Desenhas um corpo com palavras. Inventas encontros e diálogos. Ensaias situações. E isso te envaidece. 

Tem sido assim desde sempre. Nossa história é longa, feita de sedução e cumplicidade. E de novidade. Precisas de novidades para permanecermos juntos. Nada é suficiente para ti; não sou suficiente,  e há muito deixei de tentar encontrar razões para isso.  Examinas a moça e o teu olhar me agride. O teu desejo me agride; o corpo dela me agride; e a sua juventude. Agrides-me. E me excito ao imaginar-te com ela, com todas como ela. Sempre jovens e interessantes e de olhares sonhadores. O que fiz aos meus sonhos? 

Agora, ela vem em nossa direção. Parece não nos ver. Ou finge não ver. Senta-se na mesa ao lado e pede um chá. Olhas discretamente, o ângulo não favorece. Sinto a conexão que se estabelece entre os três. Sim, algo nela se insinua: o cruzar de pernas, a lentidão do bule a entornar o chá, a echarpe que é retirada, expondo o pescoço esguio.

Sinto um calor repentino, a sala se tornou sufocante. O meu rosto arde. Ela está ao teu alcance, basta que pronuncies uma palavra. Imagino a aproximação lenta, a sedução quase explícita, a conversa que terias com ela. Reparo que estou a viver tudo isso dentro de mim. Tu e ela são apenas peças do meu jogo, que levo adiante como forma de me ferir. Qual a diferença entre prazer e dor? Volto à cena e constato que já não te preocupas em disfarçar o interesse. Há agora um esquadrinhar aberto, à espera de reciprocidade. Ignoras-me. Sou feita de matéria invisível, ainda que em carne-viva.

Ela termina o chá; olha-nos. Sim, encara os dois. O que pensará? Ter-se-á interessado por ti? Por mim? Contudo, nada mais acontece. Ela se levanta, sem pressa, dá meia-volta e desaparece das nossas vidas. 

Esta noite, quando estivermos a foder, pensarás nela. Eu também.

[in A respiração do tempo, Minimalista, 2022]

Sombra

os meus olhos estão cegos para o mundo sem ti.

my eyes are blind to the world without you.

Sombra (excerto)

A respiração do tempo [contos]
Minimalista, 2022

Sempre

A vida será sempre sonho.

[Life will always be a dream]

A respiração do tempo (Minimalista, 2022)

Convulsão

“Ao sinal invisível, os homens começam a disparar. Descarregam as armas, como uma ejaculação coletiva, fruto de um gozo inominável. Uma nuvem de pássaros tinge o azul do céu com gritos vermelhos. As pessoas vão caindo, flor a flor.”

[excerto do conto Convulsão, em A respiração do tempo]

Uma edição Minimalista