
“Can you teach me how to dance real slow?”
Don McLean (Miss American Pie)




Ontek foi a inauguração da sexta exposição do projeto FOTOGRAFAR PALAVRAS.
@fotografarpalavras
Obrigada ao Jorge VAz Dias, por estar comigo na intensidade do poema.
Obrigada ao Paulo Kellerman, por agenciar beleza e afetos.
Obrigada ao m|i|mo – museu da imagem em movimento, pela acolhida a cada ano.
E obrigada à Silvia Bernardino, à Elsa Arrais e ao Jorge, por serem meus olhos neste dia festivo. Abraço forte.


[isto também é sobre Gaza]


A PONTILHISTA
Na respiração do tempo (Minimalista, 2022), Ana Gilbert combina uma escrita ortogonal e com letra de médico com o pontilhismo da poesia.
***
Ana Gilbert apresenta-se como uma contista pontilhista e, eu suspeito que isso só seja possível por ser uma artista multifacetada que traz para a escrita o contágio, a contaminação de outras artes.
Aqui, o tempo (subjectivo e colectivo) – objecto literário escorregadio – tem cor, tem cinematografia (Vardaniana, Kar-Waiana) tem fotogrametria e, por isso, tem respiração. Respirar o tempo no tempo de hoje é muito desafiante e, paradoxalmente, sufocante.
Um livro que traça os caminhos do sangue e do oxigénio, ´o movimento lento – sístoles e diástoles – invisível aos olhos apenas respirável´ – e que nos convida à respiração do tempo – mesmo quando nos encosta contra a violência do sufoco – é, por isso, importante.
´A terra vibra em agonia insuspeita, reverberando fundo e mais fundo, alastrando um grito calado pelo horror. Os homens marcham como demônios. Desarticulados do mundo, as passadas firmes e lentas, e as pessoas olham como se de um filme se tratasse. Ou de uma excentricidade. Uma criança entorta o olhar e vê a arma de outro ângulo. Pensa que é uma brincadeira. E eles seguem. Esmagam o miolo delicado da flor – um dedo; torcem o caule da erva que se espalha – o mamilo de um seio quente. Pisoteiam o cigarro jogado ao chão, que queima lentamente a terra – a vulva que se oferece ao carinho.´ (p. 80, conto Convulsão).
A capacidade de Ana Gilbert para tornar o invisível respirável chega sem pré-aviso. Faz da visualidade, (i)respirabilidade – a partir do olhar dela que é nosso, emprestado. Os olhos-pulmões são centrais nestes contos – olhos cegos, fechados, lacrados, concentrados, tortos, sós, vazios, perdidos, afogados, cansados, melancólicos, aquosos, inquietos, mas também lúcidos, espantados, sonhadores e atravessados de poesia.
Detive-me nesta fotogrametria do parto tão poética – ´Nasces. Como um poema. Lápis em atrito, a despejar palavras desordenadas no papel. Arranhaduras de pele com pele, em abalos convulsivos. A sensação viscosa de morte iminente. A explosão que te leva a uma outra vida num mundo aterrador. (…) Leio-te em voz alta. Reconheço-te. Poema escorreito que desembocou na margem, enfim.´ (p. 65, conto A hora)
Do parto à morte, das mortes aos partos, Ana Gilbert ´Vai repassando as imagens, como num carrossel para diapositivos. A escrita, os fragmentos, os olhos, o olhar.´(p. 38). No tempo sombrio do presente manter os olhos abertos – e continuar a respirar – é um acto de coragem e resistência.
´O que mostrar, o que querem ver? ´(p. 167)
A resposta chega pelo eco da cineasta francesa Agnès Varda: ´If we opened people we´d find landscapes´. Os contos de Ana Gilbert abrem. E encontram atmosferas e superfícies subjectivas cujos eixos, linhas e planos se cruzam formando ângulos rectos de 90 graus. Muros de violência e trauma (luto, solidão, morte, dor, desistência, entropia) encontram chãos ´com um resto de vida ´(p. 27) – prazer e sonhos.
Paredes e chão formam, então, um L perfeito onde o tempo respira: ´movo-me no tempo abissal dos afectos´(p. 26). ´Era ela com ela, era ela sem ela.´(p. 14-15) Comunhão e ausência. Queda e voo.
A sua escrita é, por isso, ortogonal. Atravessada pela perpendicularidade emocional mas também pela perpendicularidade narrativa. Em muitos dos contos, vira do avesso as personagens e a direcção narrativa. E como é frustrantemente prazerosa a ausência de um arco climático resolutivo ou a presença de um desfecho ambíguo ou opaco ou inesperado. Aí ´Não há tempo, apenas intervalo ´. (p. 50) (Para a nossa imaginação.)
Gosto deste elemento na escrita da Ana – dá intervalos para a decifração e para a ausência dela. Escreve contos com letra de médico – com ambiguidade e ofuscação (talvez porque é isso que acontece com a mecânica da memória que atravessa todos os contos e talvez com a própria mecânica do consultório de psicanálise).
No que toca ao erotismo isso é particularmente triunfante. Há pouco erotismo com letra de médico – o meu predileto – na literatura contemporânea, mas a Ana consegue trazer-nos essa caligrafia. Uma caligrafia que parece beber da estética cinematográfica do género dito ´doomed romance ´ com o seu clássico In the Mood for Love de Wong Kar-Wai (2000).
No conto Circum-ambulação a circularidade da escrita cria um efeito de slow motion/câmara lenta, repetição, e mise-en-scène que coloca um holofote no objecto do desejo e na sensação do desejo. Eu não preciso de saber porque é que os protagonistas repararam um no outro para respirar a (in)visibilidade do desejo ou o papel das projeções e defesas – anunciado no espelho – nesse mesmo desejo. O conto não oferece intensidade no desenvolvimento da história e no preenchimento – teatralização ou encenação – das personagens, preferindo uma lenta, arrastada e obsessiva recolha de um momento subtil para disparar e intensificar a emoção. Cada novo reescrever da mesma pergunta a três vozes (do homem, da mulher e do espelho), acrescenta e dilata a tensão porque satisfaz e frustra. A clareza e a opacidade do desejo no mesmo shot. Cair dentro do pântano, da areia movediça do desejo é muito mais diastólico e sistólico para a respiração do leitor. Deixa o sangue bombear e o desejo respirar. Esta concessão é uma abordagem interessante para a escrita do erotismo que teima em não se deixar colonizar pelas nossas caligrafias, mas esta, a da Ana, captou-me por olhar de dentro e de fora para a totalizadora e arrebatadora imediatez da sensualidade e da tesão. De fora, porque usa o espelho para convidar o leitor a participar como voyeur com memória do seu próprio tempo e com pele onde esse tempo e o da estória escorrem simultaneamente – duas bocas acesas no mesmo fogão que exigem atenção.
No conto Histórias possíveis fui levada para a cinematografia do filme Porto (Gabe Klinger, 2017) mas fico-me por uma aproximação muito tímida: ´The camera is a voyeur, looking in at this relationship from without, perhaps from around the corner of a wall, through a window, from another booth in a restaurant, or through a mirror. ´ (online review no site Reddit). Serve isto para realçar que, neste conto, a perpendicularidade narrativa é sublimada.
No entanto, dizer que a Ana escreve com letra de médico não significa o encontro com uma escrita clínica. Pelo contrário, a prosa é poética porque pontilhista. Não é fácil escrever a respiração das emoções mas (tal como fez com o erotismo), Ana Gilbert consegue-o ao entregar-se a uma pintura de pontos com as palavras.
Contista pontilhista, estilisticamente aplica pequenos pontos de cor pura lado a lado na tela do papel (em vez de misturá-los na paleta) que, à distância, se misturam opticamente, criando uma imagem mais vibrante e luminosa mesmo quando aquilo que o tempo (da leitura) respira (e nos dá a respirar) é sombrio e violento – tão violento que a nossa própria respiração fica suspensa, comprometida, engasgada, presa, sufocada. Isso aconteceu-me nos contos Convulsão e Estado onírico: ´ Um gato se aproxima, atraído pelo odor dos peixes. O homem cego toma o gato como se peixe fosse e esfrega o gato/peixe para lhe tirar as escamas/pele. O gato morre em carne viva e o homem cego sorri em sua máscara grotesca. Tenho nojo. ´(p. 73).
A pintura de pontos começa logo na seleção de micro-contos que precedem cada conto. As cores são puras. Evita o uso de cores misturadas para obter uma maior intensidade e luminosidade na sua escrita (como já vimos em relação ao erotismo). Zona crepuscular impressionou-me pela beleza da cor da nostalgia que ela consegue isolar através do carácter fantástico e evocativo da sua escrita: ´Estiveste sempre aí? O toque se materializa e sinto: são as raias, grandes e pequenas, várias, muitas, numa dança etérea, um voo fora do ar. Circundam-me, algumas se enterram na areia, como ouro à espera de revelação. Ondulo como elas, voo como elas, deixo-me ficar, entregue a essa liberdade momentânea. Nossas superfícies se encontram, num prazer mútuo.´ (p. 107). Para mim, a raia foi um desses pontos de cor pura que não precisa ser misturado à priori com outras cores, outros pontos – o súbito anoitecer, a maré alta, a correnteza – para criar uma ilusão sensorial que está, afinal, enraizada na minha própria realidade. Isto acontece por causa da ilusão óptica, quando ela me convida a ser a misturadora interpretativa das cores que ela pinga para o papel. Uma espécie de ilusão de Chevreul mas no plano literário. Encontramos bordas brilhantes entre tiras adjacentes de cores puras.
´ Fragmento a fragmento, dia após dia. Um mosaico de imagens, um tipo de colagem que reunia as suas partes dispersas. Ando em busca dos fragmentos de mim como naqueles quebra-cabeças de infinitas peças.´(p. 37, conto A Guardiã de sonhos).
As cores dominantes – azul e vermelho.
´Uma nuvem de pássaros tinge o azul do céu com gritos vermelhos. ´(p. 80); ` A onda apareceu diante dela, o vermelho alastrou-se, o vale foi inundado.´ (p.37).
Nos 29 contos que dão corpo ao livro, este ´carnaval de rua ´(p.35) co-existe com uma tela a preto e branco, lembrando-me a estética do filme Poor Things de Yorgos Lanthimos (2023) em que opressão (pathos) e liberdade/emancipação (a sede de aventura, descoberta, inocência, curiosidade, surpresa e re-aprendizagem do mundo) não seguem uma lógica linear (uma lógica que é perturbadora e mágica ao mesmo tempo):
“nenhum sorriso, apenas eletricidade; corrente contínua em circuito fechado. as duas, etéreas, no lugar do não-lugar, em travessia. azul.” (p.45)
´sinto-me um gigante invencível, sou violência e ocupo um espaço neste mundo feito de praça e sangue, sou corpo e existo fora do pântano, sou ritmo e o tempo volta a passar [explosão]´ (p.57).
Explosivo é o ritmo e o encontro com as ilustrações delicadamente pontilhistas da Maraia – ´a escrita precisa de pele´. Também o minimalismo da edição respeita os poros da escrita.
O último fio de prumo que vou lançar para dentro deste livro violentamente bonito recai sobre os contos Meditação, Cena e Escrita onde encontro um paralelo com Helena Almeida, uma das artistas plásticas mais importantes da arte contemporânea portuguesa. Ana Gilbert reflecte sobre o uso do auto-retrato e sobre o processo criativo com a mestria inspirada – leia-se liberdade, multidisciplinaridade e experimentalismo – com que Helena Almeida criava.
´Ando em círculo; os ciclos voltam. O trabalho nunca está completo, tem de se voltar a fazer. O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o teto, o canto, o chão; depois, o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções. São maneiras de contar uma história´. (Helena Almeida, citada em: Carlos, Isabel – Helena Almeida: Dias quase tranquilos. Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p. 13.)
No diálogo imaginário que me atrevo a entreter Ana Gilbert responderia: ´Começou a tecer sua própria filigrana e se descobriu capaz de criar parcerias de enfeitiçada sonoridade que ecoavam no espaço, provocando a sua estabilização. O tempo encolheu e ganhou a regularidade do ritmo; aos poucos, as formas começaram a ganhar definição. Olhou-se ao espelho e percebeu as mudanças. A pele, tornada texto, reluzia.´ (p.173).
Não é por acaso que o meu primeiro ímpeto quando li Ana Gilbert tenha sido escrever um poema blackout a partir do pontilhismo reluzente de um dos seus contos. Foi um desvio egoísta, pressentindo que ao escrever ´a sério ´ sobre o que ela escreve ´sofreria com a minha incapacidade para decifrar-te ´ (p. 139). Os astrónomos egípcios discordariam de mim, mas existem livros que não se querem alinhados a fio de prumo. No entanto, eu tentei procurar a estrela polar que sustentasse a (tua) poesia. Aqui está[1].
24 Junho 2025
[1] Agora vou ´à varanda fumar um cigarro, como de costume´ (p.31) e reler o primeiro parágrafo do conto Existência que começa assim ´Não sei bem como começou. Há muito que os dias estão sem contornos. Só sei das horas em que consigo fumar e esquecer de mim. (…) Debato-me e não saio do lugar. Não há onde possa segurar, alguém que me possa amparar. Apenas este sabor a morte, este cheiro acre que me devolve a presença do mundo, este mundo feito de mijo, vómito e merda. Afundo.´ (p.55). Fumo e espero que a noite chegue para continuar a procurar estrelas polares. De manhã, lançarei mais fios de prumo até piramidizar ´ um mundo em miniatura, feito de vida e verde, que lhe era mostrado por uma mulher que dizia: – Vê: o deserto não é tudo, é apenas preâmbulo de algo que está prestes a brotar… ´ (p. 152). E acredito, frouxamente, em predestinações. Note-se: Frouxamente é um advérbio optimista.

The beauty we see day after day acts like dust that accumulates in our eyes and makes our gaze more focused on what really matters. The more we look, the greater the accumulation of dust; and that makes our gaze blind to everything that isn’t beauty.
We unlearn the banal. We unlearn the ugly.
We become blind.
Text: Paulo Kellerman

“O passado é como o mar: nunca sossega.”
José Eduardo Agualusa (Manual Prático de Levitação)




A secagem seguiu a lavagem
O ciclo da limpeza deixava-a impaciente,
como quem compra champô de lêndeas
e, com um pente fino, escova o cabelo
da raiz à ponta.
Queria brincar de observadora
mas a porta não era de vidro
nem tinha papel.
Se isto não acabar em 5 minutos tudo morre.
Ficou mas não ficou.
Acaba de secar no hotel.
Isso foi o jeito dela me dizer: e tudo não morreu na passagem lenta do tempo sem piruetas.
Cumplicidades com a Ana Sofia Elias














‘Passar música’ é uma arte que o Jorge VAz Dias domina com perfeição. Desde o aquecimento do ambiente, momento em que as pessoas estão entretidas nas conversas em pequenos grupos, até o ápice onde os corpos conversam na pista de dança, num contágio mútuo, levados pela energia incrível do Jorge.
Um obrigada gigante ao @djcut_s por essa noite e pela generosidade em se deixar fotografar. E ao @osfilipesbar, por ser espaço de materialização dessa força coletiva.

demora-se na inspiração do tempo
desdobrar-se-á na expiração

Hoje, na publicação # 5214 do FOTOGRAFAR PALAVRAS, uma cumplicidade bonita com a Ana Sofia Elias.
Catavento de papel para apanhadoras de tulipas nova-iorquinas
Os buses vermelhos na nuca crespa dos arvoredos carapinhudos
Onde os deuses dão umbigadas aos marsupiaizinhos.
Musseques e mussiros.
Paper pinwheel for New York tulip catchers
Red buses on the curly nape of the bushy treetops
Where gods bump bellies with tiny marsupials.
Musseques and mussiros.
Fotografar Palavras, coletivo artístico, criado pelo Paulo Kellerman, que amplifica talentos, promove encontros e parcerias. E, principalmente, alimenta afetos. Diariamente, desde 2016.

Texto do Jorge VAz Dias sobre o nosso LATITUDES, para o Jornal de Leiria.
Viste (e sentiste) o que está lá para ser descoberto. Obrigada, amigo poeta.
Texto completo aqui.

com Ana Sofia Elias

Neste momento, há pouco o que celebrar no mundo. São tempos sombrios que lançam múltiplos reflexos distorcidos e angustiantes.
Contudo, a vida pequena, cotidiana, continua e é preciso que seja assim. Pequenas joias aindas são lapidadas nas relações humanas. Rastros de luz ainda penetram pelas fissuras e emocionam ao revelarem a beleza que persiste.
Já são oito anos deste espaço do blog. Por aqui passaram várias vidas, vários olhares, (anônimos ou nem tanto), várias de mim.
O meu espanto é sempre enorme ao constatar que ainda há pessoas que param o tempo e se dispõem a olhar, ver e sentir. E isso faz valer a pena.
O meu obrigada e o meu sorriso.
“O que vemos, o que nos olha.”
Georges Didi-Huberman

At this moment, there is little to celebrate in the world. These are dark times, casting multiple distorted and distressing reflections.
And yet, ordinary, everyday life goes on, and it must. Small gems are still being polished in human relationships. Traces of light still slip through the cracks and move us, revealing the beauty that endures.
It has now been eight years since this blog space began. Many lives have passed through here, many gazes (anonymous or not so anonymous), many versions of myself.
I’m always deeply moved to realize that there are still people who pause time and choose to look, to see, to feel. And that makes it all worthwhile.
My thanks and my smile.
“What we see, what looks back at us.”
Georges Didi-Huberman


O André Pereira escreve retratos à máquina.
Fotografa com palavras.
Ele esteve no Festival A Porta e eu tive a sorte de ser retratada por ele.
Um retrato de aguçada sensibilidade.
Depois, escrevi seu retrato com luz.
Obrigada por esse momento, André.
Obrigada, ao Festival A Porta, pela iniciativa.



o corpo marcado pelo azul da cidade.